A Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais (ENPPC) foi lançada em 2018 com o objetivo de reduzir a dependência externa, criando stocks sólidos através do aumento da área de produção de cereais em Portugal. Seis anos depois, a maior parte das medidas não chegou a sair do papel, e a meta prevista não só não foi atingida, como a produção de trigo, por exemplo, continua a diminuir.
Ainda assim, o presidente da Associação Nacional de Produtores de Cereais, José Palha, acredita que nem tudo está perdido, pois o atual ministro da Agricultura já terá manifestado disponibilidade para “revisitar” a Estratégia.
A área de cultivo de trigo no Alentejo reduziu drasticamente nas últimas quatro décadas. Em 1986 havia 234.454 hectares semeados e, em 2023, apenas 17.666. Quais as razões que explicam esta evidência?
A evolução é negativa por várias razões. Em primeiro lugar, a entrada de Portugal na União Europeia (UE) em 1986 teve um grande impacto na produção interna de cereais. Antes de 1986, havia a EPAC que controlava o armazenamento e os preços dos cereais, mantendo-os elevados de uma forma artificial. Com esta grande alteração começámos a aparecer no mercado mundial e, desde aí, Portugal nunca foi competitivo na produção, o que se explica pelas nossas condições edafoclimáticas: clima mediterrâneo com grandes secas e, ultimamente, com muita chuva concentrada em períodos curtos, a acrescentar a solos sem grande aptidão para cereais. Os preços reduziram drasticamente e os agricultores começaram a optar por culturas mais rentáveis.
Ainda assim a área de sementeira reduziu cerca de 13 vezes nos últimos 40 anos. A produção de cereais deixou de ser apelativa?
Existem regiões com produtividades muito superiores às nossas. Em Portugal, as margens económicas são cada vez menores o que faz com que os agricultores optem, quando o solo é bom e há água, por culturas permanentes como o olival e o amendoal. Vemos esta grande transformação por todo o Alentejo. Nas outras terras, sem acesso a água, e que, infelizmente, correspondem à maior parte do território nacional, temos assistido a uma reconversão para pastagens, com gado em regime extensivo. O desafio da soberania alimentar, apesar de operarmos num mercado global e de termos o apoio dos países da UE, é uma grande preocupação.
Temos de aumentar a nossa capacidade de armazenamento que atualmente é de 15 dias. Por exemplo, a China, o maior produtor de cereais do mundo, e um dos países mais populosos, tem uma capacidade de armazenamento para quatro anos.
Basta haver um conflito como tivemos na Ucrânia, em que as cadeias de abastecimento falharam, ou mesmo, durante a pandemia em que tivemos vários momentos em que houve a iminência de não haver cereal no mercado, para percebermos a importância de uma maior autonomia alimentar. E o Estado tem aqui um papel crucial em conjunto com os agricultores.
Daí a Estratégia Nacional lançada em 2018. Quais foram os objetivos?
A Estratégia previa um grau de autoaprovisionamento de 40%, correspondendo 80% ao arroz, 50% ao milho e 20% aos cereais praganosos como o trigo, a cevada e a aveia. Foi pensada com três grandes objetivos: a redução das importações, a promoção da atividade agrícola em território nacional e a valorização da produção. Não temos as condições ideais de produção, mas podemos produzir mais. O clima mediterrâneo tem grandes inconvenientes, mas também tem uma vantagem. Na altura da colheita, feita no verão, colhemos sempre o cereal totalmente seco no campo. Não temos perigo de chuva nessa época e, em consequência, de humidade. Isso evita uma série de problemas como a proliferação de microtoxinas que afetam a qualidade do grão.
Passados seis anos, qual o balanço das medidas aplicadas?
Das 20 medidas que constam na Estratégia, foram implementadas seis, a maior parte respeitantes à produção. As outras medidas não chegaram a ser implementadas porque, entretanto, o ministro saiu e quem veio a seguir não deu continuidade. Por isso não se conseguiu o resultado previsto. Tivemos, também, um ano de seca gravíssima, seguido de um ano de muita chuva no outono que impediu a semente de nascer, e por isso, nem sequer dá para aferir muito bem o impacto das medidas que temos vindo a tomar. Posso dizer que em relação ao autoaprovisionamento nos praganosos passámos de 5% para 6% e o objetivo que tínhamos era de 20%.
Neste momento, estamos novamente em negociação com o Ministério da Agricultura e temos um compromisso com o ministro da Agricultura que implica revisitar esta estratégia para inverter esta situação.
Qual é o panorama atual da produção de cereais em Portugal?
Em 2018 a nossa capacidade de autoaprovisionamento era de 23% e o objetivo era subir para 40%. Segundo o INE, 2021 foi o ano com menor produção de cereais em Portugal. Continuamos numa posição muito débil em relação à nossa autossuficiência. Para os cereais praganosos, nomeadamente o trigo duro para massas alimentícias e o trigo mole para pão, somos autossuficientes em apenas 6% e só Malta tem um grau inferior ao nosso. Estamos muito dependentes das importações da Ucrânia, da Rússia, da Roménia e da Polónia, grandes fornecedores do mercado mundial. Estas exportações foram suspensas com a guerra na Ucrânia e Portugal teve de se abastecer em outros mercados mais distantes e mais caros, nomeadamente na América do Sul. Tudo se mobilizou para não haver falta de cereais, mas o preço aumentou drasticamente. No caso do trigo mole o valor aumentou para o dobro.
O que espera das novas lideranças da política agrícola em Portugal e na União Europeia?
Estamos com uma grande expectativa em relação a este Governo e, sobretudo a este ministro, José Manuel Fernandes. Em geral, a sociedade urbana tem uma visão de que os agricultores são inimigos do ambiente, que o destroem e, este ministro tem estado a trabalhar no sentido de inverter essa imagem totalmente desligada da realidade. Em relação ao panorama europeu, Frans Timmermans, primeiro vice-presidente da Comissão Europeia, e um dos responsáveis pelo Pacto Ecológico Europeu, teve um impacto negativo no sector porque impôs regras aos agricultores que limitam muito a sua produtividade sem dar uma compensação.
Houve um dia, em janeiro, que os agricultores se manifestaram em 16 países da UE. Somos totalmente a favor das boas práticas agrícolas e ambientais. Basta compreender que dependemos da terra para de- senvolvermos o nosso trabalho. Parece-me que a nova Comissão Europeia terá outra abordagem e irá ouvir mais os agricultores, as pessoas que estão no terreno.
QUAL O PAPEL DA ANPOC NA VALORIZAÇÃO DOS CEREAIS PORTUGUESES?
Começámos a trabalhar com as cadeias de abastecimento de modo a chegarmos ao consumidor e este saber que o que está a comer é 100% nacional, totalmente ras- treado e produzido a partir das melhores práticas agrícolas e ambientais. Em 2017 criámos a marca “Cereais do Alentejo” e nesta campanha contamos comercializar mais de oito mil toneladas. Temos tentado aumentar o rendimento dos agricultores, criando condições para que volte a ser interessante produzir cereais