Feliciano de Mira: “Políticas municipais para a cultura e para as artes”

Merecem apoio as ideias que preconizam a realização de planos municipais e estratégicos para o campo da cultura e das artes, envolvendo os parceiros sociais, definindo com clareza os órgãos autárquicos responsáveis e os instrumentos de gestão. Feliciano de Mira (texto)

Haverá um dia em que o campo da cultura e das artes será o eixo central das políticas municipais nos territórios do Alentejo. Ainda não é assim, e nestas eleições autárquicas sobre esta matéria houve diferentes perceções. Há candidaturas que afirmaram que a cultura e as artes são centrais, sem especificar o que é essa centralidade, qual a sua abrangência e para que serve. Outras apresentaram propostas pontuais e fragmentadas, insuficientes para enfrentar os desafios de futuro. Outras ligaram o sector a tudo o que lhes possa render dinheiro e vão até à comercialização da estridulação dos grilos, mais sinceros, outros ainda, consideram-o subsidiário não prioritário.

Atendendo à riqueza patrimonial do Alentejo, o sector da cultura e das artes deve ser entendido como um eixo estratégico que se cruza com outros eixos de desenvolvimento, capaz de gerar mais-valias económicas e coesão social. A socioeconomia da cultura e das artes alentejanas demonstra a importância dos seus patrimónios natural, material e imaterial: a paisagem, a etnografia e as tradições; as artes musicais, performativas e visuais; as criações multidisciplinares. Estas áreas são ferramentas de crescimento económico-financeiro, inovação e fortalecimento da identidade da região.

Neste contexto, merecem apoio as ideias que preconizam a realização de planos municipais e estratégicos para o campo da cultura e das artes, envolvendo os parceiros sociais, definindo com clareza os órgãos autárquicos responsáveis e os instrumentos de gestão. Depois os recursos financeiros e humanos, os equipamentos e o património sob alçada municipal, a que se liga a programação, as redes e o associativismo cultural. A criação de Comissões Municipais de Cultura e Artes e de empresas municipais para o sector podem ser soluções a equacionar.

O desenho e a implementação de um plano estratégico requerem recursos humanos habilitados, capazes de definir e articular os princípios e o modelo, a programação e o financiamento. O planeamento deve começar por uma análise retrospetiva e uma visão prospetiva, para suscitar a geração de ideias. O modelo deve atender à situação atual e ao programa operacional para o Alentejo, considerando a economia de escala regional, as competências municipais e demonstrar capacidade de regular os investimentos que fragilizem a riqueza cultural. A ideia de que Évora_2027 seja alavanca de dinamização das artes regionais deve ser muito bem avaliada para evitar que se torne uma rábula, embora não deva ser descurada essa hipótese.

As opiniões que assentam na ligação entre cultura, artes e associativismo como pilares de desenvolvimento metem tudo no mesmo saco e os resultados não são os melhores. Se a democracia associativa funcionasse, as associações estavam a realizar acordos entre si e com os órgãos municipais assumindo um papel ativo nas políticas de cultura e artes municipais.

Porém, isso não acontece, o carácter normativo e institucional legitima as decisões de poder, enquanto desvaloriza o capital social das associações. É um forte constrangimento que afeta as redes de colaboração das associações e quebra a confiança relacional. Ao reduzir o capital social das associações, reduz-lhes a capacidade de intervenção, o que tem implicações na consciência cívica, integração social, aquisição de competências, democraticidade interna e representação.

A socioeconomia do espaço propõe a proteção dos patrimónios natural e construído, dentro de uma visão territorial integrada. A defesa socioambiental é um dos grandes desafios para a emancipação dos alentejanos. As atividades artísticas conjugadas com o uso múltiplo da terra podem ajudar a combater a desertificação, além de alimentarem a resiliência e o empreendedorismo.

As orientações da Unesco, da União Europeia e do Governo de Portugal devem ser consideradas nas estratégias autárquicas para o património construído, para assegurar a sua conservação, valorização e evitar a sua degradação. No capítulo dos maus exemplos temos o emblemático Bairro da Malagueira em Évora que apresenta quarteirões em alto grau de degradação com desvios arquitetónicos e de engenharia. O projeto não está completo, há equipamentos que não estão realizados, o espaço público está ocupado com hortinhas, carros e lixo.

O abandono é notável, um contributo para a enciclopédia dos desleixos. A este caso podemos enumerar os abandonos de igrejas e capelas, sítios arqueológicos, antigas estações de caminho de ferro, celeiros, a par de atentados à paisagem.

O plano estratégico municipal deve criar programas de intervenção que reabilitem e ao mesmo tempo fomentem a implementação de boas práticas ecológicas. Os projetos de construção de centrais fotovoltaicas de larga escala e as prospeções mineradoras têm de ser travados. A rota das freguesias com interesse ambiental, arqueológico e geológico, a que podemos juntar outros projetos inovadores, são alternativas rentáveis ao extrativismo.

É necessário estar consciente da importância dos acervos e criar equipamentos específicos onde possam funcionar ateliers, estúdios multimédia e galerias. Há falta de museus, sobretudo de arte contemporânea, que mostrem a vida e obras de autores esquecidos e que justifica serem divulgados.

Todos os espaços públicos devem assegurar acessibilidade para as diferentes capacidades motoras, transportes e interfaces de acesso para os locais onde se realizam as ações e páginas de internet que mostrem itinerários para contornar obstáculos. O mesmo princípio deve abranger as acessibilidades psicológicas, devem ser criados mecanismos de mediação, em ligação com os centros seniores e estabelecimentos de ensino, disponibilizando meios digitais para a disseminação de conteúdos de acesso à distância.

A estabilidade social está alicerçada na sustentabilidade simbólica, cuja representação é a escrita dos signos que as populações usam em crenças e festividades. A sua ação transporta a força que organiza o mundo, a eficácia na reprodução da tradição e a mobilização das comunidades. Além disso, a sustentabilidade simbólica gera dinâmicas que contribuem para a resolução dos problemas em territórios de baixa densidade populacional.

A etnografia e as tradições dinamizam as comunidades e podem combater a desertificação
humana e baixa atratividade. Compete aos autarcas travar o turismo gentrificado que reduz a qualidade de vida dos residentes, através de outras formas de investimento igualmente rentáveis. As festas tradicionais estão relacionadas com a memória e a identidade, avivam memórias e consolidam identidades. É preciso analisar a sua natureza e evitar processos de desvirtuação de usos e costumes prejudiciais à dinâmica comunitária.

A sustentabilidade simbólica também pode ser revitalizada através da criação artística experimental e multimédia de modo a incentivar projetos emergentes e a transição digital nas artes. Para isso são necessários equipamentos com regras transparentes de utilização e um corpo de pessoal especializado. Os equipamentos disponibilizados aos agentes culturais e operadores artísticos são muito importantes para as candidaturas que asseguram a injeção financeira para eles e para os municípios. A ocupação dos espaços municipais deve ser concedida de forma não preferencial.

A democracia cultural significa pluralidade e diversidade de gostos e não aceita o dogmatismo estético. Os responsáveis pelo campo da cultura e artes têm de assegurar a cidadania estética nos processos e linguagens criativas. A tendência de privilegiar o entretimento em detrimento da dimensão educativa, afeta negativamente a consciência crítica e didática da cidadania estética. As políticas municipais devem assegurar a formação de novos gostos e públicos, ainda que conjugadas com a recreação lúdica.

Os festivais de cultura e artes são agregadores de gostos e novas vivências. Oferecem num curto espaço de tempo a possibilidade de contactar com diferentes meios artísticos em torno de um tema em comum. A realização de festivais de referência robustece a economia local, embora seja difícil quantificar economicamente o valor intelectual que cada pessoa retira da experiência vivida.

A programação deve atender à capacidade financeira do município e das suas parcerias, e não deve substituir-se aos operadores locais, deve apoiar o seu mérito e qualidade, atendendo ao tipo de oferta. Porém, a economia da cultura e artes alentejana está dependente de entidades públicas ou privadas que muitas vezes interferem nos conteúdos, tanto na produção como na mensagem, o que se traduz em limitações com impacto na formação dos gostos dos públicos.

O apoio à cultura e artes, é mais do que apoio ao movimento associativo, a cultura é um modo de ser e estar que advém da herança dos tempos, presente na vida das pessoas, a arte é a invenção que está a chegar. Embora seja importante reconhecer o papel das instituições culturais e artísticas, o movimento associativo está minado por interesses e gostos monocentrados. É necessário um novo contrato funcional que respeite a pluralidade estética e a liberdade criativa.

As políticas municipais devem acompanhar os programas de financiamento nas várias escalas institucionais e motivar o tecido empresarial para a sua responsabilidade social, num território onde há uma falência técnica de mercado para certos produtos do campo de cultura e arte.

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