Apesar de muitas desilusões, nunca houve uma época com tanta opulência e desigualdade ao mesmo tempo, que levante tantas preocupações. As récitas ideológicas foram substituídas por mitos oportunistas, mais objetos de consumo do que de crença, o desafio está em mergulhar nas raízes da tradição e identificar os suportes da vida das populações.
A esperança que a pós-modernidade fosse a Laudes Creaturarum (1224), que para Dante é a luz que brilhou no arranque da Renascença, enfrenta todas as ameaças e esperanças do mundo, face às crises globais. É necessário reduzir as desigualdades sociais e salvaguardar a liberdade, como instrumentos capazes de alterar o padrão de acumulação, sem descurar que a representação simbólica é a escrita dos signos que as populações usam em festividades e crenças, tornando a sustentabilidade simbólica, fator de coesão e assentamento populacional.
A linguagem desta sustentabilidade vem da ancestralidade, apesar das contaminações: hibridização, mimetismo e camuflagem. O seu capital simbólico circula entre campos, onde esses símbolos atuam nos interesses de quem os formula. A sua ação transporta a força que organiza o mundo, a eficácia na reprodução da tradição e a mobilização das comunidades.
Porém, verificamos que a sustentabilidade simbólica está ausente das políticas culturais portuguesas, esquecimento que urge corrigir para contrariar as monoculturas dominantes, que desrespeitam a arqueologia e a paisagem, enquanto promovem o abandono e a degeneração de perceções, usos e costumes. Os processos sígnicos da vida estão relacionados, por isso verificamos que certas práticas têm retirado pedaços de alma a todos nós. Também o revivalismo acrítico que une os campos do político ao do espetáculo, coloca os patrimónios imateriais a servir as in- dústrias de entretimento e as empatias eleitorais.
A candidatura de Évora_27 conseguiu que o júri a proclamasse vencedora: uma iniciativa cultural emblemática da União Europeia. Mas, na prática, não conseguiu apresentar um plano de ação sustentável que articule as regras europeias com as necessidades culturais locais, embora tal não tenha afetado a avaliação final exitosa, o que significa que esse aspeto não é relevante a nível europeu.
Há incongruências entre os objetivos da identidade europeia e as necessidades culturais das populações abrangidas – neste caso a Évora_27. É uma fragilidade que não está superada. Urge rever as regras europeias de atribuição das capitais europeias da cultura, um olhar corrigido deve exigir melhor conhecimento do terreno de modo a articular os valores europeus com as necessidades locais, para aumentar os benefícios do investimento, contribuindo para uma união europeia mais inclusiva.
A falta de ligação ao terreno do Grupo de Missão da Évora_27 , levou-o a cair num equívoco, privilegiou agentes e esqueceu outros, ficando desfalcado de uma base alargada de apoio. A mediação foi demasiado ténue, as popu- lações não a sentiram. Quando o casamento quase perfeito entre as entidades constituintes da comissão executiva deu em separação litigiosa, nem os abaixo assinados e as cartas posicionais travaram o divórcio.
Este processo em versão matrimonial, faz lembrar um caso de poliamor que redunda em monogamia feroz. As cartas dos comprometidos, fruto de alianças convenientes e interesses corporativos não têm força conjuntural. O erro estratégico do grupo de missão foi esquecer que o vagar, aplicado pelas elites locais à conquista de protagonismo, poderia ser usado internamente para outros fins.
Durante muitos anos, Évora foi uma cidade tendencialmente de pensamento comum, gradualmente transformou-se numa cidade de submissões multivariadas das quais necessita despertar. É para isso que precisamos de dirigentes arejados que vejam para além do perímetro das suas terras; precisamos de instituições atentas com técnicos competentes que saibam dirigir os recursos humanos com dignidade e que não participem em decisões que envolvam interesses próprios.
Nós precisamos de empresários que pratiquem o mecenato no campo das artes, que sejam criados mecanismos institucionais para a aquisição de obras de arte a artistas locais. Nós precisamos de uma galeria municipal de arte com equipamentos adequados e mão-de-obra especializada para as diferentes funções. Nós precisamos de novos equipamentos coletivos para a saúde, bem-estar e artes que completem os existentes, precisamos de ruas acessíveis, limpas e prédios recuperados. Nós precisamos de gente comprometida com a causa pública.
Nós não precisamos de programadores curadores, sugadores antropofágicos que roubam ideias e fazem plágios, que praticam o extrativismo cultural das tradições alentejanas.
Na fundamentação da candidatura os artistas de Évora, como Álvaro Lapa ou o enorme António Palolo estão esquecidos. E os poetas, o António Gancho, onde estão? Houve tempo em que não foi assim, mas os atuais artistas em Évora são muito tímidos, não contam das suas dificuldades coletivas, encontram-se ao poste do correio e no Instagram, aguardam melhores notícias, o seu ativismo é composto por grandes retângulos e bandeiras.
Os agentes culturais dominantes da candidatura, públicos e privados, apresentam um elevado capital simbólico e patrimonial, seguem-se as associações profissionais com infraestruturas funcionais e outras que vivem da alocação de espaços para a realização das suas atividades. Porém, a leitura do primeiro bidbook [programa de candidatura] revela exclusões de grupos com peso e provas dadas em diversos campos de expressão artística. Aguarda-se que as candidaturas previstas para os agentes locais sejam capazes de reduzir o deficit de pluralidade estética – não inclua os agentes locais já contemplados – e envolva o maior número de criadores residentes.
O projeto aprovado tem, à escala local, uma componente património-institucional de forte capacidade interventiva, outra de capacidade intermédia e outra que levanta questões. A Azaruja com 800 habitantes e a Fábrica Catalã infraestruturada com ligação local. Porquê fazer um centro de arte contemporânea com uma associação de Lisboa?
O projeto deste centro deveria ter iniciado as atividades em 2022, mas nada disso aconteceu. Por outro lado propõe-se refletir “sobre as relações de poder entre os humanos e os animais, seguindo a transformação de uma praça de touros – espaço de cultura agonística e de combate – num centro de arte contemporânea”. Como abordar esta matéria tão sensível sem incluir no debate o mundo da tauromaquia?
A comemoração dos 50 anos do Bairro da Malagueira é estranha, o projeto do bairro não está completo, o regulamento de construção não foi cumprido, as adulterações arquitetónicas são inumeráveis. As pessoas ocuparam o espaço público e fizeram jardins e hortas pessoais, dirigentes associativos alugam espaços comerciais para habitações precárias a imigrantes. Salientar a qualidade do projeto de arquitetura é uma coisa, outra é o que vem no primeiro bidbook, melhor seria acabar o projeto e perguntar às pessoas que lá vivem, especialmente aos mais antigos, o que deveria ser feito para melhorar o bairro.
Os impactos diretos que a Évora_27 trouxe para a cidade e sua envolvente, até agora são diminutos. As em- presas locais foram preteridas e os trabalhos adjudicados a empresas fora da região, embora tenhamos em Évora quem os pudesse executar com a mesma qualidade. A nível dos públicos locais, a fragilidade no processo de mediação afeta o caráter participativo e colaborativo da proposta.
Não sei se a cidade está preparada para ser a Capital Europeia da Cultura em 2027 de modo a despertar as pessoas para a importância das artes e da cultura. Não sei se há calendário, embora haja fundamentos para se proceder a reajustamentos, as pessoas gostariam de saber como resolver as debilidades deste pro- cesso, em particular num ano de eleições autárquicas.
A sustentabilidade simbólica é o garante da coesão social e comunitária. O grupo de missão cumpriu os requisitos institucionais de forma vitoriosa, mas descurou a coesão simbólica do processo, o que levou a uma situação de conflito e à sua queda dentro das regras acordadas e aceites.