Fernando Eugénio Pacheco Mamede nasceu em Beja no dia 11 de novembro de 1951 e o atletismo foi o seu mundo. Morava ao fundo da Rua da Casa Pia, e era filho de uma senhora chamada Custódia, doméstica, e de um senhor, alfaiate de profissão, de nome Joaquim. Aos três anos, foi sujeito a cuidados médicos especiais, pois uma doença pulmonar deixou-o entre a vida e a morte. Todavia, o rapaz ultrapassou a enfermidade a que fora sujeito e voltámos a ver pelas ruas da cidade uma criança, magra e aparentemente débil, que acabaria por se consagrar no universo das corridas.
Era uma criança dócil que obedecia ao chamamento da mãe, sempre autoritária e que pouca liberdade lhe dava. Obedecia, humildemente, a uma progenitora que se desfazia em cuidados com o seu jovem rebento, o que se entendia, não apenas por ser o único filho, também pelos problemas de saúde. Porém, ele, já danado para a brincadei- ra das corridas, não parava quieto e, com outros miúdos residentes na sua rua, lá ia ultrapassando novos desafios.
A instrução primária foi completada na escola da Rua Ramalho Ortigão, junto ao Liceu Nacional de Beja. Não obstante outros colegas de carteira se assumissem mais tarde no cosmos do futebol mundial, como José Romão [jogador da I Liga e, depois, treinador com carreira internacional], Fernando Mamede gostava era de corridas.
Da instrução primária saltou para a Escola Industrial e Comercial de Beja. E é precisamente nesta altura que a nossa amizade se reforçou. Na disciplina de Educação Física, com o professor Rony a perceber desde logo que estava na presença de um excelente atleta e a proporcionar-lhe oportunidades que o transportaram para altos voos. Lembro-me de correr na sua companhia, mas não tinha pedalada para o acompanhar. Nós, garotos, víamos nele um craque.
Beja era então uma terra pacata onde povo, sereno e calmo, tudo comentava, sendo o desporto um tema privilegiado com o qual o pessoal se debatia amiúde. Recordo, com a saudade que me vai na alma, ver o Fernando Mamede sempre a correr nas calçadas da cidade. Nas ruas, por onde passava, mormente pelas Portas de Mértola, onde se localizava a “Meia Laranja”, alguns mais velhos até diziam que o rapaz “era maluco” para andar “numa correria” daquelas.
O Vítor Santos, um dos bons atletas virados para a componente do atletismo, lá lhe dava luta, batendo-se, com altivez, a seu lado. Num campeonato distrital de corta-mato, em Beja, Mamede conquistou a sua primeira vitória desportiva, e logo de forma convincente.
Porém, o futebol também o seduzia. Fomos jogar para o Despertar Sporting Clube. Fui eu, o Vaz Lança, que mais tarde haveria de ser guarda-redes do Sporting Clube de Portugal, sendo certo que, como júnior, passou pelo Sport Lisboa e Benfica, tal como o autor deste texto, o Cano Brito, que jogaria nas equipas de juniores do Benfica e do Sporting, e o Fernando Mamede. Ainda sonhou jogar pelo Sporting, onde chegou em 1968, pela mão do professor Moniz Pereira, não para o futebol, mas para o atletismo. Para trás ficavam as excelentes marcas obtidas a nível regional, e a tal vitória no distrital de corta-mato.
A minha convivência com o Fernando Mamede é duradora e permanece até aos dias de hoje. Acompanhei-o nas mais diversificadas situações desportivas e pessoais, bem como em todos os êxitos por ele alcançados. Somos de um tempo em que ao chegarmos a uma cervejaria, nós, os outros, bebíamos imperiais, enquanto ele pedia copos com leite. Era assim a razão do seu viver. Havia metas para cumprir, logo, havia que tratar do corpo e de uma mente que tantas vezes lhe falhou. Corria, corria, assumia o comando da corrida, depois lá vinha a chamada “dor de burro” que o conduzia à desistência.
Já atleta dos “leões”, teve o seu primeiro emprego como funcionário da secretaria do Sporting , então localizada na Rua do Passadiço, emLisboa, local que bem conheci aquando da minha passagem pelo futebol do clube. Exercia funções de escriturário, e foi aí que se cruzou com uma outra funcionária, Alzira, natural de Algoz – uma algarvia pela qual se apaixonou. Namoraram e casaram, sendo que dessa união nasceu a Patrícia, hoje advogada. Ainda chegou a trabalhar como funcionário bancário, atividade de curta duração, pois a alta competição impunha treinos diários e incompatíveis com os horários do banco.
A sua relação, desportiva e pessoal, com Moniz Pereira foi excelente. Moniz Pereira assumiu-se como um “pai”, assegura frequentemente Fernando Mamede. O professor, catedrático na modalidade de atletismo, puxou por ele e ajudou-o a tornar-se um atleta de excelência.
Falar sobre o Fernando Mamede é elogiar um recordista de distinta elite. A um recorde mundial, somam-se três europeus e 27 nacionais. Sintetizemos: um recorde mundial de 10 mil metros; três recordes europeus na mesma distâncias; dois recordes nacionais de cinco mil metros; dois recordes nacionais de três mil metros; um recorde nacional de duas milhas; dois recordes nacionais de dois mil metros; seis recordes nacionais de 1.500 metros; um recorde nacional da milha; um recorde nacional dos mil metros, entre muitos outros.
A 2 de julho de 1984, em Estocolmo (Suécia) “sobe aos céus” do atletismo mundial. A distância, 10.000 metros, já lhe era familiar. Mas ao seu lado, de entre os vários candidatos ao triunfo no Campeonato do Mundo de Atletismo, estava Carlos Lopes, seu companheiro de clube, Sporting, e lutando com o mesmo fim, vencer a prova. A corrida iniciou-se, houve algumas escaramuças no seio do pelotão, aos cinco mil metros Carlos Lopes tentou afastar o seu mais direto adversário, Mamede, e deu um “esticão” na corrida, assumiu o comando, mas eis que à passagem do quilómetro sete, e já com Lopes a fraquejar, Fernando Mamede correu para a vitória: 27 minutos, 13 segundos e 81 centésimos. Recorde do mundo – a fotografia que publicamos documenta o momento em que cruzou a meta.
O que lhe faltou foi uma medalha nos Jogos Olímpicos, evento onde registou três presenças: Munique (1972), Montreal (1976) e Los Angeles (1984). Corria e as pernas recusavam a habitual cadência. Ficou-lhe essa mágoa. Ansioso, apoderavam-se dele vários cansaços, que a mente não digeria. Após a sua merecida consagração como recordista mundial em Estocolmo, seguiram-se, passados dois anos, os Jogos Olímpicos de Los Angeles. Grande favorito ao ouro, Fernando Mamede voltou a confrontar-se com um problema, quiçá psicológico, e voltou a falhar.
Nada fazia prever tão desesperado momento, em que cedeu à pressão e desistiu. Ainda hoje falamos do assunto, dizendo-me que “as pernas falhavam”, sendo que na noite anterior já previa que tal acontecesse. Creio que o medo de não conseguir vencer se apoderava dele, tornando-o débil, mesmo no confronto com adversários a quem já havia derrotado. Não obstante essa contrariedade, a sua maravilhosa história desportiva ficará eternamente chancelada a letras de ouro.
REGRESSO ÀS ORIGENS
Após ter dado por finalizada a sua atividade no atletismo, Fernando Mamede regressou, com muita assiduidade, à urbe que o viu nascer. Cansado de refeições adequadas para um atleta de alta competição e tendo cumprido ao pormenor, resolveu partir para um outro tipo de repastos, sendo fã da comida alentejana: caldos de peixe do rio, açordas, migas, sopas de toucinho, ou de bacalhau e sopas de beldroegas… pratos que muito aprecia. Na “rota das tabernas” temos viajado pela região marcando presenças em Pedrógão do Alentejo, Vila de Frades, Porto Peles, Vila Azedo, Quintos, Boavista, Trindade, Trigaches, Beja e por outros locais onde os sabores apresentados, sempre regados com vinhos da região. Um regresso às origens e a amizades que jamais serão destruídas.
Fotografia: Arquivo/Lusa











