Terá feito cerca de 500 filmes, incluindo documentários. “Há coisas que me aparecem ali [na retrospetiva da sua obra realizada na Cinemateca Portuguesa] que já não me lembrava de ter feito”, diz o autor de “O Mal-Amado”, a sua primeira longa-metragem, e uma das mais emblemáticas, tendo ficado para a história do cinema português como o último filme a ser proibido pela censura, estreando-se já em liberdade, a 3 de maio de 1974.
O guião do filme, financiado pela Fundação Gulbenkian através do então recém-criado Centro Português do Cinema, foi escrito pelo realizador, o irmão e também realizador João Matos Silva, e o escritor Álvaro Guerra, na altura redator do jornal “República”, de quem era amigo. Tinha todos os ingredientes para ser proibido: “canção de protesto sobre a guerra, textos proibidos, lutas estudantis, violência policial e cenas de sexo… Da guerra então, não se podia falar!”, refere Fernando Matos Silva, que então foi classificado pelo censor como “iconoclasta, dissolvente, destruidor da família”.
Curiosamente, o filme parece prever o fim de um ciclo: “Há uma cena em que três velhos revolucionários estão numa mesa a discutir política – que sou eu, o meu irmão e o Álvaro Guerra –, e há um que diz que a revolução está próxima e que o general Gomes está com a revolução”. Na estreia, com base nesta passagem, uma senhora foi perguntar-lhe se ele já sabia que a Revolução ia acontecer. “O general Gomes foi uma coincidência que vem comprovar que a vida imita o cinema, como nós dizíamos com muita graça na altura. ‘O Mal-Amado’ não é um filme realista, é uma colagem à realidade”, diz. Para explicar que o título “tem a ver com o não gostarem de nós, pois o povo todo em geral era mal-amado”.
Fernando Matos Silva nasceu em Vila Viçosa em 1940. Mudou-se para Lisboa ainda não tinha um ano, mas esteve ligado sempre ao Alentejo. “A partir dos meus seis anos e até aos 16, eu e o meu irmão João íamos para casa da minha tia Adelina, onde eu nasci, passar todas as férias grandes, do Natal e da Páscoa”. A viagem de comboio durava um dia inteiro. “Levávamos sempre farnel mas nunca o abríamos, porque as pessoas davam-nos o pão com chouriço que levavam. Também acontecia oferecerem-nos bolinhos fintos”.
O paladar dos bolos típicos da região permanece-lhe inteiro. “Das coisas mais espantosas que eu me lembro era o chá da noite com a minha tia Adelina, em que havia um prato de bolos fintos. O bolo mergulhado em chá fica ensopado, era tão bom por causa do mel! É um sabor que nunca me vou esquecer”. Esse e o do pão que abriam “ainda quente” e enriqueciam de “azeite, canela e açúcar”.
Fernando Matos Silva encontrou nas memórias de infância no Alentejo matéria para a sua obra cinematográfica. Uma experiência que diz ter deixado outras marcas: “a minha formação humanista, de certa maneira tem a ver com o Alentejo”.
Em “O Mal-Amado” – que tem como cenário Campo de Ourique, o bairro de Lisboa onde viveu até aos 10 anos –, já se encontram essas referências: uma personagem que é alentejana… um plano do Alentejo em que coloca o protagonista “a dizer um poema muito bonito de Manuel da Fonseca num banco de estrada que existe no caminho para VilaViçosa, onde se parava para fazer as merendas quando se viajava de carro”.
A partir da década de 1990, as obras maiores do realizador do movimento do Novo Cinema são sobre a região, ou rodadas neste território. “Alentejo, as Quatro Estações” (1991) é um ensaio sobre as suas paisagens ao longo do ciclo das estações do ano, que explora as tradições, a cultura e a história. “É muito natureza e ofícios, começa com papoilas e estevas na primavera”, diz da película que não indica localidades e recupera “as modas tradicionais e o cante alentejano”.
LEVAR AS HISTÓRIAS REAIS PARA O CINEMA
Em “Ao Sul” (1993), o cineasta reflete sobre o país e as suas transformações, foca o tema da emigração e evoca as memórias dolorosas da guerra colonial – tema muito presente na sua filmografia. “Quando faço cinema gosto de não deixar esquecer o período da guerra, que foi extremamente violento para toda a sociedade portuguesa”. É a história de “um jovem que volta da guerra, vai para a Holanda nos anos 70, e 20 anos depois regressa para trabalhar na terra natal, em Vila Viçosa”.
Outra característica dos seus filmes, para além de serem um pouco autobiográficos, é o facto de criar personagens a partir de pessoas reais e por vezes próximas. Neste, que escreveu com Maria Isabel Barreno, foi buscar o seu tio Elias, com quem passava uns dias nas férias em Vila Viçosa. “O meu tio era um lavrador muito engraçado que tinha a sabedoria da terra. No filme é o homem que controla o tempo na terra. Um personagem todo livre, muito moderno que toca guitarra. Não tem nada a ver com o lado agrário da vida. A vida dele é outra”.
“O Rapaz do Trapézio Voador” (2002), conta a história de Adriano, que se suicidou no dia da festa da vila, enforcando-se na praça principal e assim alterando a vida em Vila Estrela, lugar imaginário que corresponde à Aldeia das Estrela (Moura), nas margens de Alqueva, onde também filmou o documentário “Estrela do Guadiana”. Sobre “O Rapaz do Trapézio Voador” lembra Fernando Matos Silva: “É a história de um pai maluco que acha que ainda consegue semear, fazer colheitas, mas não consegue. E quer obrigar o filho a viver a vida que o filho não quer viver.”
Um ano antes, estreara o icónico documentário “Luz Submersa” sobre a Aldeia da Luz, pouco antes desta ficar imersa pela barragem de Alqueva. Seguem-se outros títulos com o Alentejo como pano de fundo.
“Fui um grande espectador de cinema, desde menino”, diz o realizador para responder à pergunta relativa ao momento em que descobriu a sua vocação de cineasta. Começou a ver filmes no cinema Europa, depois no Paris. Aos 12 anos, as sessões eram no Jardim Cinema com a mãe e o irmão, “às quintas-feiras, que era quando mudava o programa”, e juntos discutiam o que viam. “Ficávamos na Fila F, com os números três, cinco e sete. O um estava guardado para os agentes da Direção-Geral dos Espetáculos… era já o controlozinho”. Aos 15 anos, a mãe já o tinha feito sócio do Cineclube de Imagem.
De qualquer forma, fez dois anos de económicas na Universidade, cumpriu o serviço militar e trabalhou na mecanografia da CUF, onde progredia, quando decidiu fazer um curso de cinema experimental com o produtor e realizador António da Cunha Telles, que o convidou para fazer o filme “Os Verdes Anos” como assistente de realização.
“Eu ganhava seis contos e 500 por mês na CUF, que era muito dinheiro. Ele disse-me que não podia pagar isso e fez-me uma proposta de quatro contos. Aceitei, pois o que eu queria era fazer cinema. Estive dois anos como assistente de realização.” Entre 1963 e 1965 estudou em Londres, na London School of Film Technique onde fez o curso de realização cinematográfica. Dez anos depois de ter saído da CUF estreava a sua primeira longa-metragem.
“O CINEMA A FAZER A REALIDADE”
Considerado como uma das “figuras seminais” do Novo Cinema português, Fernando Matos Silva viu a sua obra ser objeto de uma grande retrospetiva organizada pela Cinemateca Portuguesa, num programa denominado “O Cinema a Fazer a Realidade” e que percorreu mais de 30 títulos assinados pelo realizador, entre longas-metragens para cinema, documentários e obras para televisão. A iniciativa incluiu ainda o lançamento de um catálogo dedicado à sua filmografia.