Não é que Tiago Pereira, impulsionador da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, não tivesse advertido no episódio emitido em setembro de 2020: “Tínhamos combinado ir ter com o Manuel Pisco, mas pensávamos que a tasca era apenas para nos encontrarmos e que, depois, íamos gravar a outro lado. Quando lá chegá- mos, ele ainda estava a almoçar com os amigos e continuou, enquanto lá estávamos. Depois, fomos buscar o material e começámos a gravá-lo”.
Do trabalho desse dia resultou a gravação de dois vídeos. Num, Manuel Pisco recita umas décimas feitas a uma velha motorizada – “Minha bela motorizada/ que tens um motor infernal/ só dás a 10 à hora/ e mandas-me logo para o hospital” – e cantou umas saias acompanhado ao acordeão pelo Cotovio.
Diga-se, em boa verdade, que tasca referido por Tiago Pereira chama-se Taberna do Ramalho, fica nas Hortinhas, ali a dois passos de Terena, e também já me serviu para cenário do canto ao despique, há uns anos, numa reportagem para a SIC.
Um dos protagonistas foi, claro, Manuel Pisco, que agora reencontro precisamente no mesmo espaço, desta feita para falarmos sobre memórias e peixe. A conversa não terminará sem me oferecer uma couve, um nabo e uma alface, já depois de um almoço de peixe do rio preparado por Felizarda Dias, a cozinheira da casa, ou melhor, já depois do licor de poejo que se seguiu ao peixe do rio.
Aos 74 anos, o homem está como novo. Já haveremos de falar da pesca, mas antes é preciso dizer que Manuel Pisco não se chama Pisco. Ou melhor, se alguém mais distraído chegar à aldeia das Hortinhas e perguntar por Manuel Inácio Leitão, homem da terra nascido em 1951, talvez só com alguma dificuldade consiga encontrar ajuda.
É que a alcunha Pisco colou-se-lhe ao corpo, tendo-a herdado do pai (Miguel) e do avô, ti’ Manuel António Leitão. “Ninguém sabe por que lhe começaram a chamar Pisco, mas o meu avô e o irmão eram conhecidos por essa alcunha e a irmã do meu avô era a ti’ Mariana Pisca”. Do avô e do pai herdou Manuel não só a alcunha, como o “dom” das décimas e o gosto pela pesca, que aprendeu desde criança.
Da infância passada na aldeia, lembra as brincadeiras “por esses campos fora” e os jogos do pião, da bilharda (com dois paus e duas pedras) e, sobretudo, o das cinco pedras, no qual quem ganhava recebia o “prémio” de ser carregado às costas pelo derrotado. “Eram outros tempos”, enfatiza.
Conta Manuel Pisco que já quando andava na escola primária era normal ir com os irmãos e os amigos até às margens da Ribeira do Lucefécit, lugar sagrado desde o período pré-romano até aos tempos medievais, ou não fosse território do deus Endovélico. Era por ali que o avô, ti Manuel Pisco, andava a guardar porcos. E foi ali que se iniciou nas artes da pesca.
“No verão, quando os porcos iam para o acarro, às horas da estorrina, a gente metia-se na ribeira. Não havia redes, nem nada, pescávamos à lapa, os peixes metiam-se nos buracos, entre as pedras, e a gente apanhava-os à mão”, lembra. Eram bordalos, bogas, achigãs e um ou outro barbo. “O que vinha à rede era peixe, depois fazia-se uma fogueira, um bocado de sal para assar o peixe e matava-se a fome com um bocado de pão”.
À medida que a mecanização da agricultura reduziu a necessidade de mão de obra, milhares de jovens alentejanos encontraram na emigração a resposta para a falta de oportunidades de emprego e salários baixos, levando ao abandono das aldeias. O fenómeno foi particularmente sentido nas décadas de 60 e 70 do século passado, com muitos a partirem para o estrangeiro, outros a fixarem-se na região de Lisboa. Foi este o caso de Manuel Pisco. “Parti para Lisboa com 15 anos, lá aprendi a profissão de pedreiro e ali fiquei até à idade do serviço militar”.
Assentou praça em 1972, partiu para Angola em outubro desse ano e, no regresso, voltou à vida na construção civil, ainda que sempre ligado à pequena agricultura de subsistência. Uns anos depois, na década de 80, deu-lhe “na ideia” construir um barco – leu bem, construir um barco -, tarefa que empreendeu juntamente com o amigo Joaquim Poeiras, de Terena. “Comprámos uns tubos para fazer as bóias, depois fomos a Estremoz tratar da chapa moldada, soldámos e vá de meter o barco na Ribeira do Lucefécit. Ainda aí andámos uns quatro anos a viver do peixe, que vendíamos nas bancas do mercado em Reguengos [de Monsaraz] e no Redondo”.
Por essa altura, eram frequentes as jornadas “de convívio” nos velhos moinhos do Guadiana. “Íamos com muita frequência para os moinhos, em petiscos e paródia… cheguei a estar lá durante três dias. Íamos para os moinhos novos, os de Monte Juntos, para o da Cinza e o do Lagarto, todos eles submersos pelo Alqueva. Perdeu-se essa tradição”. Mas a pesca manteve-se, ainda que Manuel Pisco tenha notado diferenças
“Dantes”, refere, “o barbo enfrentava a fúria das correntes do rio, agora não se movimenta e, por isso, está mais gordo. Já apanhei um com uma dúzia de quilos e isso não é conversa de pescador”. O do almoço, no dia da entrevista, teria à volta de cinco quilos, mais que suficiente para uma boa caldeta, prato que o pescador e poeta também sabe cozinhar.
Fica então a receita: “frita-se o toucinho e um bocado de chouriço, num refogado para lhe dar alguma gordura, depois mete-se poejo, tomate, pimento, louro, vinagre e vinho branco, para fazer o tempero e, de seguida, coze-se o peixe”. Falta migar as sopas para o prato chegar à mesa. Acompanhado por um tinto da região e umas décimas, ainda que algumas possam não ser de fácil digestão. “Marília vou-te avisar/ Escuta e toma atenção/ Nunca chegas a matar nada/ Tanto no ar como no chão”, disse Manuel Pisco. Marília, a sua sobrinha, não levou a mal.
AÇORDA DE ALHO E SOPAS DE FEIJÃO
Concluída a 4.ª classe, aos 11 anos, começou a guardar ovelhas numa herdade de um dos grandes proprietários da terra, Bulhão Martins. “Fui logo guardar gado. E lembro-me de ir da choça [construção rústica], feita em buinho, onde a gente dormia, até ao monte buscar o almoço e o jantar”. Para jantar, o mais certo seria uma açorda de alho com azeitonas e um bocado de queijo. Ao almoço contava com sopas de feijão ou de carne. “Matava-se o porco, matava-se um borrego e era o que de comer havia, quando havia carne”.