Em 1758, Gaspar Mendes Fragoso, pároco de Juromenha, dizia não haver dúvida que sobre o nascimento caudaloso do Rio Guadiana, “porque impetuosa é a sua cor- rente, principalmente de inverno”, atendendo às “numeráveis cheias que serve de admiração” a quem as via. Todo o ano o rio corria, ainda que de verão, “com pouca abundância” de água, houvessem quem o passasse “a pé descalço”, fosse para se “divertirem” ou “lhe tomar as águas” para rega. “O certo”, escreveu o padre, “é que de verão se vê o rio das águas muito empobrecido; sendo de inverno tão enriquecido delas”.
Nesse ano, os párocos de todas as freguesias do país receberam um questionário com 27 perguntas, uma espécie de Censos ordenado pelo rei D. José I de Portugal, sob a coordenação do então secretário de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo (futuro Marquês de Pombal). O objetivo era recolher informações detalhadas sobre as freguesias do Reino de Portugal, logo após o grande terramoto de 1755 que devastou Lisboa e se fez sentir em todo o país.
As respostas constituem uma das mais ricas fontes históricas sobre Portugal no século XVIII, permitindo estudos sobre demo- grafia, geografia e vida quotidiana da época. Em Juromenha, como se demonstra pelas respostas de Gaspar Mendes Fragoso, o Rio Guadiana era essencial para a subsistência da comunidade e a vivência das populações. Daí a referência aos caudais, ao facto de ser navegável por embarcações que “não excedem a barca” e às pescarias “mais pingues [férteis] e vistosas” feitas nos meses de verão, “com que se pescam os mais nobres peixes”.
E eram estes “muitos peixes, e de vários nomes e diversas espécies” que constituíam parte importante da alimentação das populações locais, a começar, claro, pelo barbo, que chegava a ser capturado com o peso de 30 arráteis [mais ou menos 14 quilos]. O pároco anota também as capturas de eiróses [enguias], “que são como as enguias do mar”, e de outro peixe miúdo, como bogas, bordalos ou pardelhas.
“Não consta que as pescarias deste rio sejam cativas, nem de pessoa particular, mas livres, para toda a pessoa”, refere, acrescentando que até ao “Salto [Pulo] do Lobo”, entre Serpa e Mértola, “há muitos açudes e moinhos e, por isso, não se pode em toda a parte navegar”.
Só na paróquia de São Brás dos Matos, anota pela mesma altura o padre Frei Dias Rebelo, abundante de peixes em especial “as célebres eiróses, que se pescam no rio, e os famigerados barbos pela sua grandeza”. À mesa, além do peixe, ia a “abundante caça”, como perdizes, lebres, coelhos e porcos monteses.
Por esta altura, Bento Ferrão Castelbranco era o pároco res- ponsável pela paróquia de Nossa Senhora da Conceição, isto é, da vila de Alandroal, habitada por “1116 pessoas de sacramento”, 86 das quais crianças. “Os frutos que mais colhem os moradores desta vila, no campo, [são] trigo e centeio, e em anos de colheita ordinária produz mil moios de trigo e 800 de centeio, o que se averiguou pelos Livros dos Dízimos”.
E depois, claro, havia a vinha, o azeite, perdizes, coelhos e lebres, também caça grossa, como vea- dos, cervos e “porcos javardos”, ainda que “não com abundância”. Maior era a população de lobos, em particular nos sítios da Granja e da Charneca, “a que chamam de Santa Luzia”.
E, claro, o Rio Guadiana ajudava a matar a fome, desde logo pela existência de três moinhos, “o primeiro, o moinho chamado dos Mociços; o segundo, chamado do padre Manoel Infante e o terceiro, Moinho das Beatas”, denominações não registadas no levanta- mento feito pelo investigador Luís Silva em 2004 (“Moinhos e Moleiros no Alentejo Oriental: Uma Perspetiva Etnográfica”), provavelmente por lhes ter sido mudada a denominação.
A água ajudava a produzir o pão e era abundante de peixe, como barbos, eiróses e bogas, também tencas, hoje em dia criadas sobretudo em aquacultura e cujo peso pode ser superior a quatro quilos, ou “picões”, para utilizar a denominação registada por Bento Ferrão Castelbranco, a que hoje apelidamos, mais commumente de lúcio. Anotava ainda o padre que a água do Guadiana tinha “a circunstância de que não cria sanguessugas, e se sucede vir o gado beber a ele, e algum levar sanguessuga, logo que bebe lhe cai e fica limpo”.
Que o concelho de Alandroal a terra é de peixe do rio, disso é que não resta dúvida. Ainda em 1758, o padre Manuel Ramalho Madeira, cura na paróquia de Santo António de Capelins, lembrava que o Guadiana, ali ao lado, e que nos anos de maior caudal era atravessado por uma barca com capacidade para “30 cavalgaduras e alguma gente”, não servia apenas de empecilho nas relações fronteiriças.
O rio era também uma importante fonte de alimentação para os habitantes das quatro aldeias da freguesia (Capelins de Cima, Capelins de Baixo, Navais e Faleiros), tanto mais, afirmava, que “em toda a terra se pesca” e “as pescarias são livres”. Do rio saíam peixes como bogas, bordalos ou barbos, e estes, escrevia Manuel Ramalho Madeira, “chegam a ter meia arroba”, ou seja, uns bons sete quilos.
Nem sempre a prática da pesca era isenta de impostos. Em “A Pesca e os Pescadores na Rede dos Forais Manuelinos”, o historiador e professor universitário Francisco Ribeiro da Silva não tem dúvidas em afirmar que “a atividade de pesca nos rios portugueses era económica e socialmente muito mais significativa que hoje, sobretudo em relação a espécies de prestígio, como o sável e a lampreia” (ver caixa), registando a existência no Guadiana, na zona de Mértola, de uma coutada no rio da Ordem Militar de Santiago, “na qual todos os pescadores pagariam de quatro/um dos solhos, sáveis e outras espécies que pescassem, sem mais encargos”.
Do rio ou da ribeira, os peixes, “apanhados com redes, serviam de conduto para óptimas açordas de tomate temperadas com hortelã da ribeira, ou eram simplesmente fritos”, escreve por sua vez Maria Antónia Goes na “Carta Gastronómica do Alentejo”.
MAIS A SUL, LAMPREIAS E SÁVEIS
Mais a sul, as Memórias Paroquiais de 1758 permitem identificar o consumo do mesmo tipo de peixes que no concelho de Alandroal, sobretudo o barbo, mas em Mértola o pároco Bento Leiria regista também a presença no Guadiana de sável, safio e lampreia, ainda que “de nenhuma destas espécies se conheça excessos de maior abundância, e sim muita de todos em alguns anos, e em outros pouca”. Os meses dejaneiro e fevereiro eram apropriados para a pesca da lampreia, sendo esta livre. “Só o que se pesca em rede paga dízimo”.