Filipe Beja Simões: “Aonde pára o serviço?”

A opinião de Filipe Beja Simões, gestor hoteleiro

Nos anos 90, uma cena do filme “Aonde Pára a Polícia?” tornou-se icónica. O agente da autoridade, no meio de explosões e do caos, repete com ar impassível: “Circulem, não há nada para ver”. Atrás dele, carros em chamas, pessoas a gritar, tudo a desmoronar-se. Mas ele ali está, sereno. Inacreditável — e tragicamente parecido com o que se vive hoje, tantas vezes, no nosso país.

Rimo-nos. Porque o humor tem disso. Mas também porque reconhecemo-nos no retrato. Vivemos rodeados de pequenas explosões: sistemas que falham continuamente, atendimentos frios e indiferentes, burocracias que mais complicam do que resolvem. E o mais inquietante? A naturalidade com que tudo se aceita.

Quantos de nós fomos atendidos num supermercado por alguém que fala via bluetooth com um colega ou um amigo, ignorando completamente o cliente à sua frente? Ou entrámos num café e a primeira palavra que ouvimos foi um seco “Diga”? Ou, na bomba de gasolina, convocados por um “Próximo?”, sem olhar, sem tom, sem presença?

Estes gestos, aparentemente triviais e quotidianos, revelam algo estrutural: a ausência generalizada de uma cultura de serviço. Não por falta de capacidade, mas por falta de formação, exigência, acompanhamento e, sobretudo, valorização de quem serve. Confundiu-se servir com subserviência. Quando, na verdade, servir é uma expressão nobre de cidadania. É estarmos disponíveis para o outro e ir além das expectativas.

Não é um tema sexy. Não é vanguarda, nem dá likes nas redes. Mas é urgente. E muitas vezes evitado por receio de parecer moralista, antiquado. Não é essa aqui a intenção. Trata-se, isso sim, de reconhecer que há um problema — e de propor soluções, de ousar pensar sobre tudo o que nos rodeia e não ficar indiferente.

Uma das sugestões começa por educar para o serviço. Para o gesto atento. Para a responsabilidade de fazer bem, mesmo quando ninguém está a ver. Como esperar que alguém tenha ética no desempenho, se nunca lhe foi transmitida a dignidade do seu papel?

Muito se fala das novas gerações. Que não aceitam compromissos, que saltam alegremente de trabalho em trabalho, que vivem no digital e não sabem estar no mundo real. Mas convém ir mais fundo. São jovens cheios de potencial, muitas vezes sem propósito claro e sem objectivos. Chegam ao mercado e encontram muitas vezes chefias esgotadas, lideranças que já não lideram, e uma cultura que valoriza o “cumprir horário” mais do que o “deixar marca”, fazer bem à primeira.

Estão certamente à procura de algo que as inspire, desafie. E, quando o encontram, respondem, quase sempre surpreendendo nos resultados. O desafio é criar contextos onde o compromisso se ensine, se pratique e se celebre.

Num tempo em que quase tudo se automatiza, há sectores que resistem pela força da relação humana. O turismo e a hotelaria são disso exemplo. Aqui, escuta-se, cuida-se, antecipa-se, surpreende-se. Aprende-se a lidar com a diferença, com o erro, com a urgência e com a dignidade.

O país precisa de reencontrar o valor do compromisso, o gosto pelo trabalho bem feito, e o orgulho de tratar bem quem connosco cruza caminho. Servir não é submeter-se. É construir comunidade. É fazer parte. E talvez, num tempo de tanto ruído, seja justamente a atitude silenciosa de quem serve bem que pode começar a mudar tudo.

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