Francisco Torrão nasceu e cresceu em Serpa, com o cante alentejano. Herança que recebeu do pai e partilha até hoje com os mais jovens. Em Paris, viu-o ser elevado a Património Imaterial da Humanidade com uma emoção que compara à do nascimento de um filho: “foi uma alegria tão grande”.
Por influência do pai, mestre Torrão, que dirigia o Grupo Coral e Etnográfico de Serpa e era filarmónico, iniciou-se no cante aos seis anos. Acompanhava os ensaios e algumas exibições do grupo. E fazia por “não perder a cantoria” dos homens na taberna da vila, hoje cidade, que ao fim de cada dia de trabalho ali se reuniam para beber um copo de vinho acompanhado de pão com azeitonas, toucinho ou chouriço.
Em parte graças à sua voz de cantador, Francisco Torrão era “considerado” pelos colegas e tinha muitos amigos. Foi uma criança feliz até à morte prematura do pai quando tinha só 11 anos. Seguiu-se um período “particularmente difícil”, que obrigou a uma reorganização familiar com a mãe a ter de voltar a trabalhar fora de casa.
Ainda que vá dar continuidade ao “importante legado” deixado pelo pai – aprofundando o conhecimento do cante, cantando e compondo música e poesia, para se tornar uma referência como cantador, compositor e ensaiador –, nos anos que se seguem vai conhecer e experimentar outros géneros musicais. Aprendeu solfejo na Filarmónica de Serpa, de que chegou a fazer parte, e teve aulas de piano. Conta que não tinha jeito para as teclas, em contrapartida mostrava perícia nas cordas, aprendendo sozinho a tocar a viola que era do pai.
Na juventude fez uma passagem pelo rock instrumental, fundando nos finais dos anos 60 um conjunto musical inspirado no Shadows, que vai manter-se até à ida dos elementos para a tropa. O Ala 4 foi tocar à televisão em “três programas importantes à época”, sendo num deles desafiado a cantar uma moda acompanhada da guitarra e da bateria.
Não se fez rogado, sendo “provavelmente o primeiro grupo musical a fazer um arranjo da música popular portuguesa com o tema O Ale- crim”, admite Francisco Torrão. Uma experiência, “em jeito de brincadeira”, que voltaria a repetir noutro programa televisivo, com o tema “Serpa, Minha Terra”. A crítica não perdoou, com o argumento que os elementos do grupo estavam a “dar cabo do cante alentejano”.
Não estavam! E mestre Francisco Torrão não só passou a vida a partilhar a sua herança com as gerações mais novas, o que faz até hoje, como contribuiu para que o cante fosse classificado como Património Imaterial da Humanidade, ao integrar a comissão executiva da candidatura. Em Paris, no dia 27 de novembro de 2014, assistiu em direto a esse reconhecimento com uma emoção que explica ser comparável à do nascimento de um filho: “foi uma alegria tão grande!”.
PARTILHAR A HERANÇA
Cumpriu serviço militar obrigatório, mas escapou à Guerra Colonial, o que lhe permitiu construir uma vida profissional estável mais cedo. Foi funcionário público durante 36 anos, a esmagadora maioria do tempo a trabalhar na Segurança Social como técnico superior. Já trabalhava neste instituto público, era casado e tinha o pri- meiro filho, um rapaz, quando mudou residência para Beja.
É também por essa altura que decide fazer o curso superior em Segurança Social, que lhe permite subir na carreira. Durante cinco anos desloca-se a Lisboa três vezes por semana para assistir às aulas na faculdade, regressando noite adentro. Deste período, diz que o sacrifício maior foi da mulher que se manteve “sempre disponível” para o ajudar e cuidar dos filhos praticamente sozinha – entretanto, nascera a filha.
Nunca se afastou do cante. Enquanto cantador, a sua voz faz-se ouvir acima do grupo, orientando-o: é o “alto”, e também ensaiador. Em finais dos anos 70 foi convidado para dirigir o Grupo Coral e Etnográfico de Serpa, o lugar outrora ocupado pelo pai, e por essa razão carregado de um enorme simbolismo. Disse sim, e ficou por lá 30 e muitos anos, correndo muitos palcos do mundo. Assume o papel de ensaiador também em Beja onde, à semelhança do que já fizera em Serpa, compõe para a marcha popular do Bairro da Conceição.
A reforma trouxe-lhe mais tempo para ensinar várias gerações de jovens, mas também para a leitura e redação de artigos sobre o cante. Nunca recusa um convite para falar sobre o tema, de que se orgulha ter um “acervo bibliográfico desde finais do século XIX”, onde pesquisa tudo o que lhe está ligado.
Ensaiou em Alfundão, na Universidade Internacional de Lisboa, um grupo da Escola Superior Agrária, outro profissional de Alvito, os Discípulos e os Amantes do Cante, em Beja, e mais alguns que o ingresso dos seus elementos na universidade fez extinguir-se. Em 2019, os Cantadores do Desassossego, grupo que havia fundado anos antes, dedicam-lhe o primeiro CD. Na altura, já ensaiava Os Cantadores de Nossa Senhora das Neves, que ajudou a fundar e que continua a ensaiar.
Para Francisco Torrão, “o cante está na alma do baixo-alentejano, especialmente”, já nascendo com ele e surgindo de forma espontânea, sendo curioso verificar “a facilidade com que adere a essa forma de cantar popular”, quer saiba ou não a música. Conta que pelo mundo fora, plateias extasiadas se surpreendem como é possível um “grupo de vozes tão grande cantar sem um maestro à frente para os guiar”.
PROLIFERAÇÃO DE GRUPOS
Uma década depois da elevação do cante a Património Imaterial da Humanidade, a celebrar neste mesmo mês em que completa 77 anos, mestre Torrão diz-se “extremamente feliz por ter contribuído para que o cante tivesse mais projeção”. Faz um balanço positivo destes 10 anos, mas afirma que “podia ser melhor”, chamando a atenção para “o aproveitamento por vezes indevido” decorrente da classificação.
“Há uma proliferação de grupos corais instrumentais com o cante alentejano, com instrumentos nada característicos aqui do Alentejo, excetuando a viola campaniça. Não sou fundamentalista, mas acho um exagero”.
Teme que, com isso, “não se esteja a contribuir para os compromissos de salvaguarda à UNESCO”, que classifica o cante alentejano “um canto coletivo sem recurso a instrumentos e que incorpora música e poesia”.
As fontes documentais confirmam-no: “O cante é uma manifestação popular, cantada em coro e sem recurso a instrumentos musicais”. Também dão conta de que o primeiro grupo coral organizado terá surgido em 1926, associado aos trabalhadores da Mina de São Domingos, Mértola, seguindo-se o Rancho Coral de Serpa, em 1928, que deu origem ao atual Grupo Coral Etnográfico da Casa do Povo.
“O único instrumento que o cante tem é a voz”, nota Francisco Torrão, defendendo a sua preservação “nas formas originais”, o que “não impede o surgimento de novas modas, mas segundo os padrões que existiam”. Lembra que as classificações da UNESCO não são ad aeternum, podendo ser retiradas desde que se verifiquem “alterações que tirem a autenticidade” do património classificado. “Tenho receio que os exageros, que se estão a verificar, desvirtuem o cante, e isso é negativo”, lamenta.
Para o mestre, é essencial que surjam mais grupos, sendo que o cante nas escolas “pode ser um bom incentivo”. Refere a falta de apoios “o obstáculo à sobrevivência” de muitos grupos, que “levou os restantes a começarem a ultrapassar a situação exercendo a atividade no sentido de adquirir uma certa independência”.
E conta: “Íamos cantar a uma festa, e enquanto um artista qualquer recebia dois ou três mil euros, o grupo cantava a troco de um prato de feijão e uma garrafa de vinho, passe a expressão. Acabámos com isso, e começámos a exigir caché”. A prática do grupo que dirige é já seguida por muitos outros. Os Cantadores de Nossa Senhora das Neves também já têm autocarro próprio, de 27 lugares, o que lhes permite “outra mobilidade”.
De volta ao seu papel de ensaiador, afirma que nem sempre é fácil “conciliar as diversas origens dos cantadores com o estilo”, para que o grupo “vá adquirindo características próprias”. É que, às vezes, esclarece, em duas povoações muito próximas do mesmo concelho pode cantar-se de maneiras distintas. Existem ainda outras particularidades, como a maneira do “alto” entrar, que também é diferente de local para local.
Por fim, na sua opinião há o inconciliável, “que são os grupos corais mistos, porque as sonoridades vocais [dos homens e das mulheres] são completamente diferentes”. Baseando-se em questões meramente técnicas, defende que os grupos femininos também deviam “optar por outro tipo de repertório”, em vez de continuarem a cantar modas de homens, como acontece com a maioria.