“As minhas raízes no cante são das tabernas de Pias [Serpa]. Eu era muito próximo dos trabalhadores rurais, que era quem cantava a moda, principalmente nas tabernas ao fim do dia de trabalho”, observa José Borralho, que gostava e sentia grande atração pelo cante desde criança, pois a mãe “já sabia cantar muito bem”.
Trabalhou numa padaria, e mais tarde com o pai que era alfaiate. Mas à medida que os homens eram substituídos por máquinas nos campos, provocando o grande fluxo migratório dos anos 60 para o estrangeiro e para a cintura industrial de Lisboa, “as alfaiatarias na aldeia começaram a perder clientela”.
O cantador esteve entre os migrantes deste período. Tinha 17 anos quando deixou o Alentejo para fixar-se no Feijó, onde mais tarde casou e teve os filhos. Durante alguns anos trabalhou em fábricas de confeção, depois “em pontes, na Junta Autónoma de Estradas”, até à reforma.
Aos 77 anos, é o elemento mais antigo do Grupo Coral Etnográfico “Amigos do Alentejo” do Feijó, tendo entrado uns meses a seguir à sua formação em 1986, que acompanhou de muito perto. Normalmente é o ‘ponto’, que é “quem começa dando o tom à moda”, mas às vezes também faz o ‘alto’.
No livro “Feijó, meu lindo Feijó – a identidade de um Grupo Coral Alentejano no concelho de Almada”, Ana Durão Machado explica que depois de muitos anos de “vivência do cante espontâneo nas tabernas do Feijó, pretexto da sociabilização masculina e ocupação dos tempos livres ao fim de semana, surgiu a vontade de instituir e formalizar o cante” no local. Nascia assim o Grupo Coral e Etnográfico “Os Amigos do Alentejo” do Feijó. E segundo um dos fundadores “tudo terá começado por uma brincadeira”.
José Borralho fez parte desse grupo de homens que viveu o cante espontâneo nas tabernas do Feijó, na procura de pontos de referência e união com outros alentejanos. “Encontrávamo-nos e cantava-se a moda. O cante era o grande elo entre nós e o Alentejo, porque nós gostamos muito das nossas raízes. Toda aquela ambiência do Alentejo diz-nos muito… nós, alentejanos, somos sentimentais”.
Foi com essa mesma comoção e muita alegria que viveu a elevação do cante alentejano a Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
“Senti orgulho. Pois foi reconhecer que o nosso cante não é uma coisa menor, é reconhecido mundialmente, tem um estatuto mundial, é património do mundo”. José Borralho, que é autor de muitas modas do repertório do Grupo do Feijó, compôs uma para marcar a ocasião, que os cantadores continuam a entoar em espetáculos e encontros: “chama-se precisamente Património Imaterial”. Cantou-a também no Brasil, onde foi com o Grupo de Pias no âmbito de um intercâmbio com universidades de Salvador da Baía.
CANTE ABERTO A TODOS OS QUE QUEIRAM APRENDER
Manuel Dionísio partilha a alegria de José Borralho, dizendo que a elevação do cante a Património da Humanidade “foi uma das coisas mais belas que podia ter acontecido ao Alentejo”. Estava a trabalhar quando as rádios deram a notícia “tão esperada”. Um momento que viveu com muito entusiasmo. Manuel Dionísio sempre gostou de música em geral, e cantava “desde pequenino” enquanto desempenhava as tarefas do dia a dia, que incluíam regar o quintal da família, recorda, com a ajuda “de uma latinha”.
Mais tarde, passou a ouvir cassetes de música variada e foi aprendendo sozinho a trabalhar a voz. Tudo ainda longe do cante, apesar da arte “andar” na família: dois primos fundaram o Grupo Coral Alentejano em Haia, na Holanda; havia mais um tio cantador, e atualmente tem um irmão no Grupo Coral da Mina de São Domingos. A aldeia mineira do concelho de Mértola, onde Manuel Dionísio nasceu há 71 anos.
Concluído o ensino primário, aos 12 anos guardava perus na cooperativa da Mason & Barry, concessionária da empresa de exploração mineira por mais de um século. Voltou à escola para fazer a 5.ª e a 6.ª classes pois “era bom aluno”, para dois anos depois regressar ao mundo do trabalho “numa oficina de motorizadas”, que acumulava com a distribuição de jornais pelos assinantes, ao final de cada dia.
Um amigo “tirou-o” da aldeia alentejana, convencendo-o de que se estava a perder por ali. Tinha 17 anos e aceitou mudar-se para a Cova da Piedade para ir trabalhar num café que já lhe estava “destinado”. Tem a data da chegada registada na memória: 15 de julho de 1970. Ficou 20 anos no café, de onde saiu para ir trabalhar na Câmara Municipal de Almada durante 33 anos.
Podia ter sido um dos fundadores do Grupo Coral do Feijó, pois diz que foi convidado nesse sentido. Mas por razões profissionais não pode aceitar: “O trabalho não me dava oportunidade de deslocações ao fim de semana. Para além disso, eu trabalhava à noite, que é quando temos os ensaios”. Há seis anos surgiu nova oportunidade para entrar no grupo, e desta vez não a deixou passar.
“Nem precisei prestar provas, cheguei lá e puseram-me logo no meio dos outros a cantar”, nota com júbilo. De forma informal já tinha mostrado a capacidade de cantador quando, assistindo a um ensaio, cantarolou umas modas, levando a que fosse logo convidado a juntar-se aos outros elementos.
Explica que o grupo é “muito eclético” – atualmente incluindo elementos da Beira Baixa e Trás-os-Montes, sendo que um deles é poeta. “Estamos abertos a todos. A partir do momento em que o cante passou a ser Património Imaterial da Humanidade, desde que a Unesco o classificou, entendemos que é de todos. Por isso aceitamos toda a gente que queira aprender e cantar à moda do Alentejo”. Refere a dificuldade que hoje há na renovação dos grupos, comentando: “só desejava que mais malta nova viesse para o cante. Aqui na diáspora, se não forem os velhotes não há mais ninguém”.
A dificuldade de trazer novos elementos para os grupos corais é igualmente apontada por José Borralho, que explica essa circunstância por mudanças conjunturais nos meios onde tradicionalmente era feito o recrutamento. Os campos alentejanos estão praticamente “despovoados” de trabalhadores rurais portugueses, e a “dissolução” da Lisnave e de outras fábricas conduziram à extinção “de uma massa operária”.
A ligação dos dois elementos do Grupo ao Alentejo continua forte. José Borralho “volta e meia” está em Pias, onde comprou “uma casinha”, sendo que se mantém sempre informado do que se passa na região, e particularmente na sua aldeia. Manuel Dionísio vai mais longe, não conseguindo conter a emoção: “Eu sou daqueles que está aqui há 50 e tal anos, mas não está. Estou lá sempre. O meu sentido está no Alentejo”. Os filhos e os netos “seguram-no” no concelho de Almada, mas como tem uma casa na Mina de São Domingos, diz, “sempre que posso, eu e a minha patroa [esposa] arrancamos por aí abaixo”.
MAIS DE 1080 ATUAÇÕES PELO GRUPO
Primeiro vieram os irmãos mais velhos. Depois, a mãe decidiu juntar-se-lhes com o mais novo dos filhos: José Pereira mudou-se para o concelho de Almada no dia 15 de maio de 1957, vindo de Redondo. Tinha 16 anos, “era puto, por isso praticamente não fazia nada”. Anos mais tarde, depois de cumprir o serviço militar obrigatório, foi trabalhar para uma sapataria de Lisboa onde esteve 37 anos.
Sempre teve jeito para cantar e entoava “todas as cantigas” que passavam na rádio, à época, sendo que o cante só surgiu muitos anos mais tarde, resultado do convívio continuado com outros alentejanos no concelho de Almada. “Comecei a cantar modas nas tabernas, como se fazia no Alentejo, só que aqui no Feijó. E o gosto começou a entrar, a entrar dentro de mim… e ainda hoje canto com muito gosto e muito amor ao Alentejo”
Quando o Grupo Coral foi fundado, convidaram-no para fazer parte. Mas a mãe morreu, e como “os alentejanos guardam o luto durante três anos” parou de cantar. Só depois de ter cumprido “o dever como filho”, foi juntar-se aos colegas – passaram-se 35 anos. É um dos ‘pontos’, e já foi presidente da direção da Associação que está na base do grupo.
Aos 83 anos, José Pereira dá orgulhosamente conta das mais de 1080 atuações que fez pelo Grupo Coral e Etnográfico “Os Amigos do Alentejo” do Feijó, frisando que este foi o primeiro grupo alentejano a cantar na Casa da Música, no Porto.
A cantar ou apenas a ouvir, diz que há modas que continuam a comovê-lo, porque o cante é “um canto com alma”. Foi também com muita emoção, lembra-se “perfeitamente”, que há 10 anos, no dia 27 de novembro, “às 10 e qualquer coisa da manhã”, ouviu as rádios darem a notícia da classificação do cante como Património da Humanidade.
“Eu estava com um grupo de pessoas amigas, precisamente à espera da notícia que se concretizou: foi um dia muito feliz, extraordinário para a rapaziada do cante. À noite o grupo juntou-se para ensaiar, e então comemorámos”.
Afirma que foi “uma dádiva que o cante há muito tempo merecia”, mas que os grupos corais “pouco ou nada lucraram com isso” em termos de ajuda financeira, pois o dinheiro da Secretaria de Estado da Cultura não chega até eles. “Vivemos com alguns subsídios que as autarquias nos vão dando, aqui é a própria Câmara de Almada a fazê-lo. Depois somos uma associação, pelo que tiramos algum dinheiro da cotização dos sócios”.
A ligação de José Pereira ao Alentejo é mais de “alma”, nos dias que correm: vai três vezes por ano a Redondo, e praticamente uma vez por mês à região cantar com o grupo.
COM O “CORAÇÃO CHEIO” DE ALENTEJO
No grupo não há papéis “fixos”, por isso só às vezes faz o ‘ponto’. Neste momento, é também o presidente da direção da Associação. João Mira, 54 anos, um dos mais novos elementos do Grupo dos Amigos do Alentejo, nasceu no concelho de Almada, na Charneca da Caparica, com raízes em Reguengos de Monsaraz, a terra dos pais. O pai, que nunca teve jeito para cantar, incentivava os filhos pequenos a trautear as canções do momento, cada um sentado no seu joelho. Umas eram modas alentejanas, outras estavam longe disso.
O gosto de João Mira pelo cante poderá ter despertado nesses serões em família em que os filhos afinavam a voz para maravilha dos pais, mas seguramente ganhou outro sentido nas sucessivas férias letivas de verão passadas na casa de familiares em Reguengos de Monsaraz,pois havia um tio, irmão da mãe, que era ensaia- dor do Grupo da Casa do Povo. “Nesses dias de ensaio eu ia com o meu tio, mas tinha vergonha de entrar [no recinto onde os homens cantavam] e, então, ficava sentado à porta a ouvi-los lá dentro, enquanto os seguia cantando baixinho. Aquilo era uma perdição para mim”.
A sua história com o Grupo Coral e Etnográfico “Os Amigos do Alentejo” do Feijó começou no dia em que foi ouvi-los num espetáculo no Laranjeiro, com os pais. “Eu já conhecia o repertório do grupo porque a minha mãe tinha um CD, que eu ia ouvindo ao longo do tempo. Por isso, fui acompanhando as modas a partir da plateia”.
“Quando eles terminaram”, prossegue, “o senhor Pereira [José] veio ter comigo e disse-me que tinha percebido que eu tinha estado a acompanhar as modas todas e convidou-me para integrar o grupo”. Na altura não disse que não, nem que sim, mas sabia que a reposta ia ser afirma- tiva. Uma semana depois, na quinta-feira, que é o dia dos nossos ensaios, lá estava no local. Há vinte anos que faz parte “desta família”, que já só conta com “meia dúzia de elementos da altura da fundação”.
A conduzir e em trabalho, atravessava o Alentejo para os lados de Montemor-o-Novo quando ouviu a notícia da classificação do cante pela Unesco e sentiu “um arrepio” pelo corpo todo. “Tal como estou arrepiado neste momento em que falo nisso”, nota.
“O cante é tradição, algo genuíno que todo o alentejano sente muito intensamente e gosta de ouvir mesmo que não cante. Eu mesmo, não sendo alentejano de nascimento, vivi esse momento como se o fosse… porque a verdade é que me considero como tal. Só tenho pena de não ter nascido no Alentejo”.
Há 10 anos e durante muitos, João Mira saía todos os dias da sua casa na Charneca da Caparica para fazer distribuição de material pelo Alentejo. Vinha e ia todos os dias, fazendo cerca de 500 quilómetros diários. Um gosto que superava o cansaço. “O Alentejo está dentro de mim. Ainda agora em agosto fui um fim de semana a Reguengos de Monsaraz e as lágrimas corriam-me enquanto subia o castelo de Monsaraz. Cada vez que piso o chão alentejano perco-me no tempo, a olhar e a sentir a paisagem. Eu preciso daquela imensidão”, diz, afirmando que gostava de poder “ir lá mais vezes, e até morar” na região.
Ainda sobre a classificação da Unesco, afirma não ter trazido benefícios para os grupos corais tradicionais que continuam “reféns” dos municípios. O do Feijó, que está “dependente da Câmara de Almada e das Juntas de Freguesia”, funciona normalmente em intercâmbio quando vai cantar, sendo que outras vezes pede cachê, que se resume a contribuições de pagamento muito baixas. “É mais fácil a organização pagar dois ou três mil euros a grupos acompanhados do que aos tradicionais do cante”, diz. Ao que José Borralho acrescenta: “a maior parte das vezes quase pagamos para ir cantar. Ainda é tudo na base da boa vontade, da nossa carolice, e do nosso amor pelo cante”.