Cerca de 20 crianças residentes nos Bairros da Esperança e das Pedreiras imaginavam ter raízes a sair-lhes dos pés, prendendo-as com força à terra. Desta vez foi metafórico, tratando-se de uma aula de ioga. Contudo, ao saírem do pavilhão onde esta iniciativa do projeto Shave se desenvolve, continuaram a ter de lidar com as consequências da segregação causada pelo facto de viverem em bairros desfavorecidos na periferia da cidade de Beja. Ainda assim, durante a aula de ioga, não deixaram de proferir palavras de agradecimento: “Obrigada, Sol. Obrigada, Terra”.
Irina e Maiara, de nove e dez anos, são duas das crianças que frequentam o centro do Bairro da Esperança, presenças habituais nos últimos três anos. Irina vive ali perto; já a sua prima Maiara mora a poucos quilómetros de distância, no Bairro das Pedreiras. É no Centro Social que todos os dias se encontram para participarem nas atividades propostas.
Irina diz que as suas preferidas são a dança e o ioga, mas também pintar e brincar. Maiara partilha algumas dessas preferências, como a dança, mas confessa que também gosta de “jogar à bola, mexer nos computadores e cantar”. Mas não é só. “Às vezes vamos à praia e às piscinas. No verão fomos a Monte Gordo e a Quarteira”, conta Maiara.
O Shave é um programa desenvolvido no âmbito do Projeto Escolhas, sendo o Centro Social e Recreativo do Bairro da Esperança a entidade promotora e gestora. Quando foi pensada, a candidatura projetava apenas o trabalho com a comunidade cigana do Bairro das Pedreiras. Contudo, devido à localização do Centro e tendo em conta as características e necessidades do próprio Bairro da Esperança, a área de intervenção foi alargada. Assim, o público-alvo passou a ser composto por crianças e jovens dos seis aos 25 anos, de ambos os bairros.
À sua espera estão atividades educativas e lúdicas, que ganham expressão na sala de estudo comunitária, ou nas oficinas de música, de dança e de futebol de rua. Outra atividade desportiva, apelidada de “Toca-a-Mexer”, incentiva ao movimento, as “Conversas com Escolhas” realizam-se todos os meses para sensibilizar os jovens para questões como a saúde mental ou sexual, a alimentação saudável e outros temas que fazem parte do quotidiano. Em simultâneo, as crianças de etnia cigana que entram para o 1.º ano de escolaridade são convidadas a desenvolver na Escola de Santa Maria atividades relacionadas com as artes, expressões e literacias.
Para além destas dinâmicas, ainda existe a componente do ensino à distância, desenvolvida em resultado de um protocolo com a Escola Fonseca Benevides, em Lisboa, e pensada para reter as raparigas de etnia cigana no processo de aprendizagem, evitando que os pais as retirem do ensino ao atingirem a puberdade. Dá hoje resposta a dez meninas que frequentam no Centro o regime de ensino à distância, e a outras sete residentes na aldeia da Salvada.
No último ano, o projeto Shave tentou, também, promover visitas ao exterior, conseguindo levar cerca de 25 crianças ao Fundão onde, durante uma semana, participaram em múltiplas atividades. Deolinda Zacarias, de 36 anos, é a coordenadora do projeto e reforça a importância destas visitas: “Queremos que saiam deste meio e percebam que há mundo lá fora, porque muitos deles não conhecem outra realidade senão a dos bairros onde residem. Queremos que percebam que os sonhos podem ser realizados, mas é preciso lutar por eles”.
O que está longe de ser fácil. Uma das dificuldades, diz Deolinda Zacarias, decorre do casamento e gravidez das adolescentes de etnia cigana. “Muitas vezes deixam de sonhar porque sabem que ao chegar àquela idade, acabou. E nós tentamos fazê-las ver que está nas sua mãos mudar esta situação”.
Outra atividade dá pelo nome de Shave Notícias e surgiu da necessidade de divulgar o trabalho realizado por técnicos e jovens, de forma inovadora. Todas as sextas-feiras sai uma nova edição de uma espécie de “telejornal”, transmitido na internet.
A coordenadora do projeto admite que todas estas atividades “têm ajudado muito a combater os problemas existentes na própria dinâmica dos bair- ros”, com muitas habitações precárias, isolados na periferia da cidade. É ela própria que assegura o transporte dos jovens para o Centro Social. “O Bairro das Pedreiras está cada vez mais degradado, há cada vez mais lixo. O terreno tem buracos por todo o lado. Há cada vez mais barracas. É difícil encontrar um espaço onde consigamos fazer atividades de apoio ao estudo ou realizar os trabalhos de casa com alguma tranquilidade. Então, optamos por ir buscá-los e trazê-los para o Centro”.
O Centro Social e Recreativo do Bairro da Esperança tem dois protocolos assinados com a Segurança Social, um para o Centro Comunitário, dirigido por Patrícia Canelas, já com 28 anos “de casa”, o outro para assegurar o funcionamento da creche.
Patrícia Canelas reforça a ideia de que o principal objetivo do Centro é o da “integração sociocomunitária desta população”, relativamente à qual está a existir “uma fase de revitalização de dinâmicas, de forma a aumentar a proximidade”.
Entre os parceiros incluem-se os serviços de ação social da Câmara de Beja e a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Não é apenas a distância física que marca o quotidiano. “A estrada divide a cidade dos bairros, mas há outra barreira muito grande que é o estigma. Queremos quebrar essa barreira”.
No Bairro da Esperança circulam alguns autocarros integrados na rede municipal de transportes públicos. Já ao Bairro das Pedreiras não existe qualquer tipo de acessibilidade. Patrícia Canelas diz que “as necessidades estão identificadas e o facto de não haver autocarros para a população se deslocar à cidade é um problema, porque muitas pessoas atravessam a estrada a pé”. Por estrada entenda-se o troço do IP 8, entre Beja e a fronteira de Ficalho, uma das vias que regista maior intensidade de trânsito, incluindo veículos pesados.
Quanto às crianças, existe transporte escolar para os jovens em idade de frequentar o 1.º ciclo. Contudo, este serviço não assegura o transporte das crianças do pré-escolar. Patrícia Canelas considera tratar-se de “outra barreira”, esta criada pela inexistência de um serviço público essencial, pois “se queremos a integração quanto mais cedo melhor.”.
Saiming Na Fonta, de 28 anos, é o monitor socioeducativo do Centro Social. É ele que planifica e acompanha todas as atividades de tempos livres e é o treinador e responsável pela oficina de futebol de rua. Tenta trabalhar com os jovens “competências sociais e pessoais”, isto é, o “saber-ser e o saber-estar, através de jogos informais”.
Com recurso a dinâmicas do grupo, jogos de cartas e tantas outras atividades, os jovens são desafiados a cultivar o sentimento de pertença, o espírito de equipa, a comunicação e a empatia, “olhar para o outro e perceber que somos todos iguais neste espaço. Somos uma família”. O foco é comum: capacitar estes jovens e motivá-los para a frequência escolar. É por isso que, mesmo isolados de uma cidade que teima em não os acolher, todos os dias se juntam neste Centro para aprender… e brincar.
O Centro Social Cultural e Recreativo do Bairro da Esperança tem como objetivo principal promover e apoiar a integração social e comunitária e como objetivos secundários desenvolver iniciativas nos campos social, económico, cultural, recreativo e desportivo. A ideia é combater situações de exclusão e injustiça social através de uma rede de envolvimento de Instituições e cidadãos, com vista à (re)inserção e criação de oportunidades, numa perspectiva de desenvolvimento humano e social.