História: O Presidente que quis levar o Templo Romano para o Algarve

Presidente da República entre 1923 e 1925, Manuel Teixeira-Gomes visitou Évora uns anos antes e publicou o seu relato de viagem num livro, “Re- gressos”, um best seller à época, agora reeditado. Deslumbrado com o Templo Romano, escreve que o melhor seria desmantelá-lo, pedra a pedra, e levá-lo para o Algarve.Luís Godinho (texto)

Dependessem as cidades e o património da vontade de uma pessoa, ainda que de um futuro Presidente da República, e o Templo Romano de Évora teria sido levado, pedra sobre pedra, para o Algarve. Não teria sido caso único na Europa do início do século XX, mas aqui tratou-se apenas de um desabafo escrito em 1916, em Londres, por Manuel Teixeira-Gomes, o homem que sete anos mais tarde haveria de chegar a Presidente da República.

Nesse ano de 1916, Teixeira-Gomes visitou a cidade de Évora, andou pelas ruas e pelos monumentos (já lá iremos), bebeu Pêra-Manca (ver abaixo, inteirou-se da intrigalhada entre dois cónegos da Sé (a que igualmente daremos atenção), e no meio de tudo isto, claro, passou pelo Templo Romano, a que chamou “de Diana”.

“Uma coisa única”, escreveu o autor, considerando estar perante “a evocação perfeita do mundo que melhor podia contrastar com a Évora jesuítica, tristonha e inquisitorial de que toda a cidade ressuma recordações palpitantes”. Sugeriu que deveria ser “arejado” para “lhe facilitar o efeito de divina simplicidade, perdido ou diminuído, ali, pela bruteza do muro da praça próxima e das construções cúbicas e tupidas [grossas] que o cercam e abafam”, todas elas derrubadas décadas depois.

Logo a seguir sugere que o melhor, o melhor mesmo, seria desmantelar o Templo Romano, pedra sobre pedra, e levá-lo para o Algarve. O que seria excelente” escreve Manuel Teixeira-Gomes, “era levá-lo para algum dos pequenos promontórios gregos do mar do Algarve — Ponta do Altar ou a Ponta da Piedade —, onde o ambiente cristalino e cerúleo lhe restituiria cabalmente o seu peculiar encanto”.

A proposta não só consta do texto que escreveu, em Londres, também do livro que haveria de publicar em 1935, 10 anos depois de ter abandonado a Presidência da República. “Regressos” foi, à época, um sucesso editorial, com duas edições no mesmo ano, sendo agora reeditado pela Quetzal. O primeiro capítulo é dedicado a Évora, onde chegou de comboio, já de noite. “Há uma extensa avenida que leva da estação à cidade, passando ao lado de uma igreja ou grande ermida torreada e arquitetada em leixão, como os castelos de rochas naturais que se encontram em certas praias do oceano. A cidade parece incomparavelmente mais vasta e interessante do que será na verdade”.

De tudo o que visitou, além do Templo Romano, registou com particular enlevo a Igreja da Graça [hoje em risco de derrocada, e que à época não se encontraria em melhor estado de conservação], onde chegou “cansado de tanto casarão velho, maçudo e mais ou menos apalaçado, que atulha a cidade”. O deslumbramento foi imediato: “Que agradável extravagância a que lhe assentaram aos cantos da cimalha aquelas duas figuras nuas e gigantescas de granito, de pernas pendentes, ao lado de absurdas esferas e empunhando barras de ferro. E como é que o seu belo mas estranho movimento não destoa no conjunto da arruinada frontaria”.

Nascido em Portimão em 1860, Manuel Teixeira-Gomes exerceu o caro de Presidente da República entre 1923 e 1925, altura em que renunciou e partiu em exílio voluntário para a Argélia, nunca mais tendo regressado. Desse tempo, assinala a editora, ficam os livros que escreveu, como é o caso de “Regressos”, agora reeditado, com introdução de Francisco José Viegas e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, que o apresenta como uma “espécie de guia artístico das belezas monumentais de Portugal”.

Ao segundo dia na cidade, acordou “cedo e mal-humorado”, mas com vontade de ver o tesouro da Sé de Évora. Terá sido por essa altura que recebeu “informações fidedignas” sobre “a rivalidade dos chaveiros”, dois cónegos da Catedral, situação que tornava a visita “dificílima”, ainda que não impossível.

O relato é delicioso: “Entrei à sacristia e o primeiro dos chaveiros que encontrei foi o cónego B — anafado e verdadeiramente cónego em seu aspeto e ademanes. Pôs dificuldades: devia acompanhar o arcebispo à estação, mas talvez depois do meio-dia pudesse comparecer, sendo indispensável que aprazássemos para a mesma hora o outro chaveiro, cónego A, com quem, redondamente e sem pejo o declarava, se não entendia”.

Já o outro cónego, “género macerado e caduco — ali presente, condescende porém — sem dúvida para contrariar o colega — em mostrar já o tesouro. Entreolham-se com eclesiástica ferocidade e o cónego B, perante a minha insistência, cede”.

No tesouro, apreciou, entre outras peças, “uma cruz recamada de esmaltes e pedrarias”, o “famoso” cálice de oiro maciço, “coberto de pequenas cartelas, representando cenas da Paixão, em relevo e delicadissimamente cinzeladas”, mais a custódia e o báculo “de prodigiosa ornamentação manuelina”. Terminada a visita, anotou ter deixado os cónegos “de chave em punho, entreolhando-se raivosamente e tão irreconciliáveis como os havíamos encontrado”.

DUAS CRIADAS, UM ALFERES E UM GENERAL

Em Évora, Manuel Teixeira-Gomes ficou alojado num hotel onde havia uma criada, Sancha, e outra, cujo nome se esqueceu, “mas que parecia uma talha de azeite ambulante”. Aqui, na companhia de um “alferes impertinente, com a sua eterna camisa de punhos vermelhos a assanhar-lhe a elegância do uniforme” e de um “general alcachinado [corcovado]”, bebeu Pêra-Manca, “de flavor subtil”, e jantou “umas intensas cabidelas de molho espesso, aveludado, quase pecaminoso”. Ainda reparou em “odaliscas” alinhadas à porta de um bordel, às quais “três boémios pitorescos, de grenha inculta e aspeto diabólico” dedicavam acordes de rabeca.

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