Histórias com lugar marcado. Há um roteiro literário para descobrir Sousel

Nove escritores, de estilos e gerações distintas, foram desafiados a “dar voz” a 18 locais do concelho de Sousel. O resultado é um roteiro literário que transforma caminhos rurais em narrativas contemporâneas, reinventando a forma de viajar e ler um território. Em Sousel, cada passo é uma história e cada história um novo caminho. Júlia Serrão (texto)

“Ora sejas muito bem-vindo, viajante. Repousa um momento. Aqui me vês, qua- se seco, mas poço fértil fui. E muita sede amainei. Não te peço que escutes a minha história. Peço-te algo mais simples. Bebe a minha história. Verás que vale a pena (…)”.

Com o título “O Poço dos Viajantes”, assim começa a história de autoria de Rui Zink, uma das 18 que marcam 18 lugares do concelho de Sousel, para inaugurar uma nova forma de fazer um roteiro literário. A ideia partiu da Associação Era Uma Voz que, de acordo com a presidente, Maria João Lima, quis “sair do modelo comum de roteiro, que normalmente se centra num escritor que viveu, nasceu, morreu ou que tem alguma relação com a localidade”, para criar “um roteiro ficcionado”.

Sandro William Junqueira, Patrícia Portela, Joana Bértholo, João Tordo, José Luís Peixoto, Adélia Carvalho, Isabela Figueiredo e Álvaro Laborinho Lúcio são os restantes escritores portugueses “convidados a escrever histórias para determinados pontos do território” do concelho de Sousel, após um fim de semana em residência no concelho para conhecê-lo, sendo que cada um dos escritores ficou “alocado a uma freguesia”.

Ainda assim, houve total liberdade para escreverem, não tendo de ficar limitados ao local “propriamente dito”. O resultado é uma diversidade de narrativas, “algumas com uma relação óbvia com um lugar particu- lar ou com a própria freguesia, outras são histórias completamente inventadas”.

Cada escritor escreveu duas das 18 histórias inspiradas nos 18 locais, criando um itinerário onde “a leitura se transforma numa viagem”. A rota é autónoma, não precisa de guia ou de marcações prévias, sendo que vai existir “um mapa com as localizações” para cada um “seguir à medida que quiser, de uma só vez ou em partes”.

Ao percorrer o concelho, os visitantes encontram totens em locais estratégicos, onde podem ler histórias exclusivas impressas, que “podem não ter propriamente uma relação factual, mas que são novas histórias que se criaram para aqueles lugares”, frisa Maria João Lima. Diz que o efeito é bastante interessante, “pelo contraste de se ter escritores contemporâneos a escrever ficção”, logo “uma literatura moderna e contemporânea, para locais que têm uma aparência tradicional e rural”.

O projeto para residência de escrita foi dividido em duas fases, sendo que a primeira aconteceu em 2022 com um grupo de cinco escritores, e a segunda em 2023 com os três restantes. A seleção foi feita pela equipa da Associação Era Uma Voz que favoreceu a inclusão de “uma leva mais nova de escritores, para uma abordagem menos clássica”.

Além dos totens com as narrativas exclusivas espalhados pelo território, a Rota de Turismo Literário de Sousel compreende a Biblioteca Afonso Cruz e o Olival dos Escritores, na freguesia de Casa Branca, bem como carrinhos para partilha de livros, denominados “Leve Um, Traga Outro”, que promovem o convite à leitura e à troca de livros.

O Olival dos Escritores é uma espécie de jardim de oliveiras tradicionais do Alentejo, transplantadas para este local, oliveiras de sequeiro, onde cada uma foi batizada com o nome dos escritores que participaram na rota. A ideia, segundo a presidente da Associação Era Uma Voz, é que sempre que um escritor visite o território para participar em qualquer atividade promovida pela associação, uma oliveira passe a ostentar o seu nome. O objetivo, aponta, foi também reabilitar um espaço da aldeia que estava abandonado, e torná-lo comunitário. Os carrinhos para a troca de livros, agora incluídos na rota, são uma prática com mais de um ano que tem otido “muitos bons resultados”.

COMPROMISSO COM A CULTURA E VALORIZAÇÃO DO TERRITÓRIO

O projeto da Rota de Turismo Literário surge de uma iniciativa da Câmara Municipal de Sousel que se candidatou a financiamento no âmbito do Programa de Valorização do Interior, promovido pelo Turismo de Portugal, e depois chamou a Era Uma Voz para desenvolver a ideia e os conteúdos para criar a rota. O projeto, resultante de uma parceria entre as diferentes entidades, visa reforçar o compromisso com a cultura, a leitura e a valorização de um território que, pela sua interioridade, se defronta com problemas muito próprios, sendo um dos mais preocupantes o despovoamento.

A Associação Era Uma Voz é composta por Maria João Lima, pelo marido, o escritor Afonso Cruz, e desde meados do ano passado pelos atores Clara Fonseca Borges, que também é produtora, e Pedro Beirão. Dois dos elementos fundadores já saíram.

Descentralizar a oferta cultural foi o incentivo principal para a criação da associação, que está relacionada com a ida de Maria João e Afonso Cruz para o concelho de Sousel, faz agora 16 anos. “Quando saímos de uma grande cidade do litoral, como Lisboa, para uma povoação pequena do interior com esta característica, que é perder população, sentimos a discrepância que existe em termos de oferta cultural e de acesso à mesma”.

Por isso, conta que durante muitos anos quiseram criar uma associação na pequena aldeia de Casa Branca, para onde trazer uma oferta cultural diferenciada, já que ali só existia “a de cariz folclórico ou popular, que tem o seu lugar e a sua importância”. Assim surgiu a Associação Cultural e Recreativa Era Uma Voz, cuja missão, conforme pode ler-se na sua página eletrónica, “é reduzir a assimetria da oferta cultural entre o litoral e o interior do país e contribuir para a dinamização da região, tendo sempre como objetivos a capacitação, o desenvolvimento e o bem-estar da comunidade local”.

A associação nasceu da vontade de trazer oferta cultural ao local e, sobretudo, da ideia de partilhar os livros, alguns milhares que o casal tinha em casa e constituíam a sua biblioteca pessoal. “A nossa ideia inicial foi partilhá-la com a comunidade. Ou seja, fazer uma biblioteca pública acessível a qualquer pessoa a partir dos nossos livros”. Entretanto, as doações têm sido muitas e fizeram aumentar o espólio bibliotecário.

Sendo hoje as bibliotecas mais do que simples depósitos de livros, a Biblioteca Afonso Cruz promove também atividades de dinamização cultural. Atividades relacionadas com o teatro e o cinema, por exemplo, contribuem para a programação anual da Era Uma Voz, que funciona na sede do Grupo Musical Artístico e Desportivo da Casa Branca (GMAD), uma associação criada nos anos 30, “com uma grande história com a comunidade, pois houve uma geração inteira que aprendeu aqui a tocar”, comenta Maria João Lima.

O espaço, que lhes foi sugerido dinamizar e recuperar, quando procuravam sede para a associação, estava abandonado e a degradar-se. “Acabámos por assumir os órgãos sociais da GMAD e a associação ocupa o seu espaço”, onde funciona a biblioteca Afonso Cruz e um bar. As duas associações têm um protocolo em que “uma dá o espaço e a outra dinamiza”, conclui.

IGREJA MATRIZ DE CASA BRANCA

Texto de José Luís Peixoto

“Ali vai um menino com o seu pai. Tudo o que nos rodeia faz parte da história que o pai lhe conta: a igreja inteira, o sólido volume que ocupa, o granito que lhe dá estrutura, a janela do coro alto na frontaria, as torres. Tudo isto faz parte dessa história, tanto como as próprias palavras que o pai escolhe.

Um dia, o menino estará aqui, terá o tamanho do pai e, diante desta mesma igreja, de- baixo da sombra matriz de Nossa Senhora da Graça, acreditará que, ali, vai um menino com o seu pai. Por ter escutado a história que o pai lhe contou, julgará que esse menino-miragem escuta a mesma história do seu pai-miragem. Acreditará que tudo isto, o chão debaixo dos pés, o céu lá em cima, a Casa Branca a rodeá-los, tudo isto pertence a essa história (…)”

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