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Inédito de Túlio Espanca: “Memórias de um aprendiz de música dos Amadores”

Texto inédito de Túlio Espanca, que lhe serviu de guia para uma palestra que proferiu na sede da antiga Academia de Música Eborense no dia 14 de março de 1987. São anotações que Túlio Espanca foi buscar aos diários de juventude e que o ajudaram a rememorar os tempos de aprendiz de músico filarmónico. Rui Arimateia (fixação do texto) e Túlio Espanca (texto e autorretrato)

Criação das bandas de música, depois da Revolução Francesa de 1789 – numa das primeiras manifestações de classes de ofícios e outros grupos sociais do associativismo em Portugal, onde se compreenderam, além das filarmónicas, as mútuas, cooperativas, sindicatos e outras entidades colectivas que procuravam corresponder a uma situação que se configurava fortemente ameaçadora das classes médias e da generalidade dos trabalhadores.

Todavia, os sinais mais claros da organização popular entre nós, surgiram nos alvores do liberalismo, com o triunfo da Carta Constitucional, em 1834, ao desmoronar-se o regime violento e opressor do miguelismo.

Na 2.ª metade do Séc. XIX surgiram em Évora os primeiros agrupamentos filarmónicos, concretamente na década de 1860: os FORMIGÕES Academia de Mi- nerva, seguidos pelos Alunos de Minerva, que o povo, jocosamente, alcunhou de CHOURIÇOS, e ainda, a PRIMEIRO DE DEZEMBRO – esta, efémera – bandas que se submeteram aos grupos políticos dominantes na época, ambos monárquicos, mas que se guerreavam duramente: os Progressistas e os Regeneradores.

Dessa rivalidade nasceu a dissolução dos agrupamentos artísticos, facto que originou a constituição, devido ao espírito conciliador do flautista emérito, Joaquim Gregório de Sousa, do Grupo de Amadores de Música Eborense, em 10-11 de Novembro de 1887. Havia, ainda, a Banda da Real Casa Pia de Évora.

1.ª Sede: Rua João de Deus, antiga Rua Ancha; 2.ª Sede: Teatro Garcia de Resende – Salão Nobre, por cedência generosa do Dr. Barahona, depois de 1892, e Teatro que o mesmo e a respectiva Comissão Ins- taladora haviam doado à Câmara Municipal de Évora. 3.ª Sede: Convento das Mónicas, a S. Mamede, no 1.º andar. 4.ª Sede: Convento das Mercês, no regime de aluguer, com o subsídio de 200$00 mensais. 5.ª Sede: Regresso a Santa Mónica, após as obras de transformação do andar principal para Escola de Instrução Primária. Ocupava duas salas térreas – sala de ensaios e sala de baile.

Em 1920: período de crise provocada pela fundação da Banda 13 de Outubro, instituída pelo caudilho político, Dr. Barros Carapinha. Chamada a Banda da Malagueta, em virtude da cor vermelha do seu fardamento. Sede actual: Rua do Raimundo, desde 1928. Melhoramentos no edifício, propaganda associativa, renovação instrumental, novos fardamentos. Regente memorável: José Dionísio; mais antigo: Rio de Carvalho; ulterior: Capitão Pires da Cruz. Quota mensal: 2$50. Alcançou o número de 700 sócios e a banda atin- giu. nessa época, o número de 45 figuras.

Memórias. DIÁRIO do adolescente.

1929: Aprendizagem de solfejo. Mestre Paulino. Influência do grande músico João Rafael Marques, 1.º bombardino e 1.o violino do Eden-Teatro.

Março de 1930: Regressei ao aprendizado dos Amadores.

Abril, dia 12: Recebi, do maestro José Dionísio, o instrumento preferido – a flauta.

Julho, dias 27 e 28: Festival de música instrumental popular, promovido pelos Amadores, no qual se exibiram, no Jardim Público, as Bandas de Palmela, Harmonia, de Reguengos, Montemor-o-Novo (Círculo Montemorense) e Casa Pia de Évora. De Reguengos veio um comboio especial, com muitos visitantes, e de Montemor, outras excursões, grupos que se constituíram em cortejos pelas ruas da cidade.

Agosto, dia 14: Recebi, do Sr. Dionísio, o clarinete, depois de ensaios na requinta de clarinete em mi bemol. Professores os Senhores Ramos e Belbute.

Agosto, dia 23: O maestro José Dionísio, que tinha sido regente de banda regimental, entregou-me pessoalmente, as pautas do primeiro ordinário, de ensaio individual, intitulado O PASSADO.

Fim de Agosto: Ensaio da marcha espanhola, MANTONCITO, de Crespon.

Setembro, dia 26: Demissão do maestro Dionísio, com o último ensaio, dedicado, exclusivamente à peça, O MADURO.

Outubro, dia 17: Primeiro ensaio do novo regen- te José do Nascimento Fonseca, que lançou na estante a peça EL NIÑO DE LA PALMA.

Dia 29: Principiei o estudo da 4.ª parte da Ópera CAVALARIA RUSTICANA.

Dia 31: Primeira noite que toquei à estante, integrada na banda completa. Ensaios do ordinário espanhol EL NIÑO DE LA PALMA e a CAVALARIA RUSTICANA, de Mascagni.

Novembro, dia 18: Sétimo ensaio da banda, com dois ordinários: passo-doble O MANUELINHO e TREO-CHIM-PUM.

Dia 24: Demissão do regente Fonseca, após desacordo com membros da direcção e de elementos da banda, durante o ensaio na sede.

Novembro, dia 25: Ensaio geral sob a batuta do contramestre Sr. Ramos. Tocou-se, apenas, o HINO DA RESTAURAÇÃO. Nesta noite o requinta Sr. Gomes, distribuiu os novos fardamentos de Inverno, de flanela de lã toda de azul, calça listada de vermelho, casaco justo, agaloados, na mesma cor, botões amarelos e boné alto, acordoado a ouro e listões encarnados.

Dia 26: Pelas nove horas da noite reuniram-se na sede e sala grande de ensaios, todos os aprendizes de música, e alguns filarmónicos veteranos, no total de 15, tocando, várias vezes, o patriótico HINO DA RESTAURAÇÃO, sob a regência do Sr. Gomes.

Dezembro, dia 1: Meu baptismo público de músico dos Amadores. Saída de madrugada, da sede, pelas 6,45 horas. Composição do Grupo: 42 elementos, dispostos em sete filas, que foi acompanhado por numeroso grupo de habitantes vitoriando a Restauração de Portugal. Seguiu-se o seguinte itinerário: Praça do Giraldo, Quartel General, Comando de Polícia – Governo Civil -, Câmara Municipal (esta vistosamente iluminada), Redacções dos diários Notícias d’Évora e Democracia do Sul. Colaborei, com meu irmão Otelo, João Pires e João Barradas, dos Amadores, nos agrupamentos tunas de instrumentos de cordas, em desfiles nas ruas da cidade. De noite, assisti ao baile festivo da sede dos Amadores.

Dia 5: Primeiro ensaio do novo regente, capitão Pires da Cruz (que veio de Montemor-o-Novo), com a marcha alemã ALTE KAMERADEM, e a continuação da Ópera italiana CAVALARIA RUSTICANA (N.º 39), e estreia da peça FANTASIA ROMANTICA. Agradou a todos os presentes – músicos e associados – a apresentação do novo regente. Este primeiro ensaio, que teve início pelas 21 horas, terminou passante das 24 horas.

Dia 10: Ensaio da turma palhetas – clarinetes, saxofones, flautas e sendo distribuídos os instrumentos bocais nas terças-feiras e o ensaio geral nas sextas-feiras. Tocou-se a marcha germânica ALTE KAMERADEM e a FANTASIA ROMÂNTICA, lenda de L. Montaigne.

Dia 12: Décimo terceiro ensaio: das 21 às 23,30 horas. Além das duas peças mencionadas, ensaiou-se o ordinário FLORIPES, de S. Ribeiro.

Dia 23: Décimo sexto ensaio, e segunda vez que toquei com a boquilha ao contrário. Tocou-se o Hino do Grupo e a mesma marcha alemã.

Dia 29: Minha segunda saída pública com os Amadores, durante o 66.º Aniversário do Diário de Notícias. Houve desfile nocturno, com archotes acesos, pelas principais ruas da cidade, tocando-se a marcha alemã ALTO CAMARADA e o ordinário espanhol EL NIÑO DE LA PALMA. Houve soirée no Eden-Teatro, oferecido à rapaziada e para as meninas, uma matinée no Salão Central Eborense. Foram espectáculos muito concorridos também por familiares dos convidados.

Dia 1 de Janeiro de 1931: Choveu torrencialmente durante todo o dia, o que impossibilitou a saída da Banda pelas ruas da cidade. Todavia, a direcção dos Amadores ofereceu aos seus elementos, um beberete na própria sede, durante o qual falaram: o tesoureiro, senhor José Correia; o arquivista José de Mira Neto; João Rafael, 1.º bombardino e ex-contramestre da banda; e o regente, Sr. Pires da Cruz. Efectuaram-se, na sede, de tarde, matinée, e de noite baile muito vistoso.

Dia 6, Reis Magos: Recebi, das mãos do regente, um novo clarinete, o qual fora comprado ao prof. Xavier Adão, membro da orquestra-jazz CRUZ DANCE.

Janeiro, dia 30: Ensaio geral, onde se tocaram o passo-doble espanhol, de J. Pacheco, e a Ópera, completa, CAVALARIA RUSTICANA.

Fevereiro, dia 10: Ensaio parcial de peça castelhana UNA NOCHE EN CALATAYUD, e a CAVALARIA RUSTICANA.

Dia 12: Ensaio da cegada carnavalesca, na sede dos Amadores, para saída durante o Entrudo, tocando-se três ordinários passo-doble, dois quaternários e uma valsa. O grupo era regido pelo 1.º trompete de Montemor.

Dias 15 e 16, Rei Carnaval: Saída da cegada funambulesca IMPERIAL DO VASO, composta por 18 figuras, sendo doze executantes, a qual foi considerada a mais excêntrica que percorreu as ruas da cidade. Em percurso tocaram-se as marchas da Real Casa Pia Eborense,SPEARMIT e O ARGONAUTA; na ssociedade, a valsa SEVILHA, as ALFACINHAS e O CIGANO.

Disposição dos elementos: Pat e Patachon, respectivamente, Almeida e Caixeirinha (muito parecidos com os originais); Jaime Galinha, vestido de mulher, pandeireta; Miguel Ramalho, patachon mais velho e outro personagem muito bem caracterizado, pandeiretas; Inácio Roque, saxofone barítono, de matrafona; Ilhéu, bombardino, de clown; Nicolau, clavicórdio, de madona antiga; Roque, trompa, de romeira; Plácido, clarinete, de mulher excêntrica; Aleixo, clarinete, dama do Séc.XVIII; Silva, clarinete, de matrafona; Barradas, saxofone-sopra- no, de senhora da alta roda; Heliodoro, bombeiro, de judeu errante; Paco, pratos, de espanhola; Modesto, caixa, de plebeu antigo; meu irmão Otelo, porta bandeira, clarinete; e eu, finalmente, também clarinetista, mascarado de oficial de marinha.

Dia 17, fim do Entrudo: A Banda IMPERIAL DO VASO, terminou a sua actuação brincalhona, percorrendo as principais ruas da cidade, praticamente com a mesma composição, desta feita envergando lençóis e fitas coloridas, imitando albornozes árabes e com outras excentricidades, o que foi motivo de muita galhofa popular. Aceitavam-se gratificações voluntárias, as quais renderam 380$00, e se gastaram numa patuscada monumental.

Dia 25: Inspecção da Arma de Artilharia Ligeira N.º 1, na qual fiquei apurado simultaneamente com mais quatro mancebos voluntários, inscrito na 1.ª Bateria, unidade onde cumpri o serviço militar como recruta, praça pronta de condutor e de 1.º cabo, durante três anos. Exercitei três instruções normais, uma transferência temporária para Artilharia N.º 3 de Lisboa (após a Revolução de Agosto de 1931); tirei a especialidade de sinaleiro de transmissões do alfabeto orográfico; frequência das escolas regimentais; compus alguns álbuns didácticos desenhados; e, finalmente, dirigi a oficina regimental de barbearia, o que me libertou de muitas rondas, patrulhas nocturnas e outros serviços do quotidiano militar.

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