João Gabriel Caia: “Apagão, menos resiliência, mais alienação”

A opinião de João Gabriel Caia, presidente da Delegação de Vila Viçosa da Cruz Vermelha Portuguesa

Sobre o “apagão”, muito tem sido dito sobre a nossa dependência energética, mas haverá sempre incoerência se o foco não recair sobre o essencial: não temos soberania energética. Quando em tempos se decidiram privatizar as empresas de energia, desvalorizando a defesa da sua permanência na esfera do estado, alegavam-se contenção de custos, desempenhos de défice, virtudes do mercado e riscos da “cegueira ideológica” de quem criticava a retirada estratégica do país num setor essencial.Mais uma vez, a realidade impôs-se às lógicas político-partidárias simplistas de quem prefere a propaganda para beneficiar o lucro de poucos à custa do bem-estar de muitos.

Pese embora vários constrangimentos com SIRESP e comunicação entre Governo, Proteção Civil, e Autarquias, coletivamente revelou-se alguma resiliência e capacidade de resposta para, pelo menos, prever necessidades e salvaguardar o funcionamento de setores prioritários durante as primeiras 48 horas (pelo menos). A articulação de autarquias e proteção civil com forças de segurança, bombeiros, autoridades de saúde e instituições sociais foi relevante para permitir salvaguardar hospitais, unidades de cuidados, respostas alimentares, etc., em cada comunidade.

Não obstante, voltamos a revelar muitas dificuldades na articulação com as populações e no que à resiliência individual diz respeito.

A total dependência dos canais digitais não nos preparou para um meio em que estes desaparecem. Cada pessoa ou agregado ter prevenido um kit de emergência, que inclua primeiros socorros, telefones descartáveis, agendas telefónicas pessoais, lanternas, rádios a pilhas, conservas, dinheiro em numerário e até gerador ou fogão de campismo, revelou-se essencial para aumentar a capacidade de resposta e diminuir o pânico coletivo que se verificou. É nosso dever começar a trabalhar para que essa prevenção se concretize.

E falemos de pânico: é precisamente pela inexistência dessa resiliência individual que continuamos a assistir a uma reação imediata de descontrolo face à escassez de um bem essencial (no caso, a energia). O alarmismo e pânico revelou-se desde a primeira hora com açambarcamentos de todo este tipo de material que ninguém se preparara para ter, resultando num pico de procura. 

Como em qualquer pico de procura, beneficia quem mais tem (ou é mais rápido) e registam-se carências desnecessárias de quem menos pode. Contudo, a lógica que conduz a população ao açambarcamento de superfícies comerciais, não é a mesma que as levará a recorrer a respostas sociais. 

Se para as primeiras impera o ato de adquirir um produto e, portanto, uma lógica de poder facílima de colocar em prática, para as segundas torna-se necessário o ato de autorreconhecimento da necessidade e consequente pedido de ajuda que, normalmente, é de difícil prática e, por vezes, só se concretiza mediante persuasão solidária e entreajuda comunitária.

É por este motivo que as respostas sociais devem ser mais imediatas possíveis, sobretudo no que à alimentação da comunidade diz respeito. Recusamos a perspectiva paternalista de que agir prontamente nesses moldes provoca alarmismo. Antes pelo contrário: significa a identificação de que o alarmismo já existe, a “corrida aos supermercados” é, infelizmente, prática corrente e inevitável enquanto a comunidade não tiver a resiliência acima explanada.

Poucos minutos após a identificação da gravidade do problema, foi fácil prever que a interrupção de comunicações estaria para breve (o que sucedeu cerca de quatro horas depois), pelo que se impunha agilidade na divulgação à população da disponibilidade de doação imediata e racionada de alimentos não perecíveis e, dessa forma, tranquilizar quem foi deixado para trás. 

Assim fizemos na Cruz Vermelha Portuguesa de Vila Viçosa. O resultado não foi um açambarcamento. Antes pelo contrário, foi a existência de uma alternativa solidária face ao açambarcamento comercial que já se verificava, portanto, um escape de fraternidade perante a indiferença.

A reposição de energia ainda na noite do mesmo dia tornou efémera esta alternativa, felizmente, mas não apaga o diagnóstico que se impõe: a alienação de serviços essenciais à comunidade tem, como último resultado, a alienação dos seus indivíduos. O encanto de alguns por uma experiência analógica é apontado de cima. Visto de baixo, o encanto é obrigatoriamente ultrapassado pelo desalento.

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