João Moura Reis: “No abstracionismo sinto uma maior liberdade”

Há uma exposição de pintura de João Moura Reis para ver em Estremoz. Trata-se de uma iniciativa da associação Estremoz Terra de Encantos e do Howard’s Folly. Luís Godinho (texto) e Hugo Francisco (fotografia)

Na adolescência, é João Moura Reis quem o assegura, andou dividido entre duas paixões: as belas-artes e a medicina. Começou a interessar-se por pintura ainda muito novo, depois ponderou formar-se em arquitetura, acabou na medicina. “Fiz toda a minhavida profissional na medicina e nunca mais peguei num pincel, a não ser de vez em quando, para fazer uns esboços, uns esquissos, que acabavam invariavelmente por ir parar ao lixo”.

A pandemia de covid-19 “apanhou-o” como presidente do conselho de administração da Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano, a poucos meses de se aposentar. Fechado em casa, com a perspetiva do fim da carreira profissional, a velha paixão, que o havia levado a pintar alguns quadros e a expor numa mostra coletiva, ainda estudante em Lisboa, regressou em força.

“Não podia ficar sem fazer nada, sentado a olhar para a televisão. Comecei a pegar nos pincéis, nos lápis e, pronto, esta é já a quarta exposição que faço a nível individual”, conta João Moura Reis, na azáfama da montagem da sua nova exposição, patente no Howard’s Folly, em Estremoz, até final de agosto, numa iniciativa impulsionada pela associação Estremoz Terra de Encantos.

Trata-se, no fundo, de um “regresso a casa”, uma vez que a sua exposição de estreia tinha sido, precisamente, em Estremoz, sua terra adotiva (nasceu em Abrantes), seguindo-se outras em Portalegre e Castelo de Vide.

Tens alguma rotina diária ou a pintura surge de forma espontânea?

É mais o impulso de ir ao atelier, mais isso que propriamente uma atividade diária. As ideias surgem e enquanto não estão na tela sinto essa necessidade de ir ao atelier, de concluir o trabalho. Às vezes leva três ou quatro dias, até mais, até porque eu uso muito o acrílico, seca melhor que o óleo, mas não se podem misturar muitas cores, caso contrário sai uma amálgama sem contexto. É preciso tempo, saber esperar.

No seu caso, o processo de criação não resulta de um impulso. “A ideia surge, muitas vezes, da minha experiência no dia-a-dia, até a partir de determinadas notícias ou imagens que vejo”, conta João Moura Reis, conduzindo-me a um dos quadros, o primeiro desta exposição, intitulado “O Último Mergulho”, que remete para um episódio muito pessoal, ocorrido ainda enquanto jovem médico.

Nesta primeira secção reúne diversos quadros abstracionistas, entre os quais “Árvores Cremadas”, um trabalho muito marcado pelos tons vermelho, castanho e preto, a remeter-nos para a tragédia que praticamente todos os anos atinge as florestas portuguesas. Ao lado, em “Os Lobos”, o ponto de partida foi o mundial de râguebi, com a presença de um lobo visível a um olhar mais atento. Não, para compreender a pintura de João Moura Reis não basta olhar. Parafraseando José Saramago, é preciso ver depois de olhar, e reparar depois de ver.

Tens alguma explicação para esta opção pelo abstracionismo?

É a forma como mais gosto de me exprimir. Utilizo a cor… essencial e ao mesmo tempo também não estou sujeito às regras de um romantismo ou de um surrealismo, por exemplo. Aqui posso-me exprimir em termos de sentimentos, como eu sou. Encontrei no abstracionismo uma liberdade maior em relação a outras escolas, menos sujeita a regras. Não quer dizer que não haja regras de pintura, mas aqui há uma liberdade maior. E tu vais ver depois ali uma outra coisa…

Essa “coisa” é um outro quadro, onde se aventura pelo expressionismo abstrato na linha de Jackson Pollock, o chamado drip painting, no qual os pingos de tintas de várias cores se cruzam produzindo um determinado resultado estético, mais fruto das circunstâncias que da vontade do autor. É exemplo único no conjunto de quatro dezenas de trabalhos que integram esta exposição.

Em “Cores de Sevilha”, a primeira nota são os tons de amarelo, laranja, dourado, prateado… e depois haverá tempo de olhar e de ver, talvez para reparar em dois touros, uma sevilhana, um leque, um vislumbre da Giralda, minarete da grande mesquita de Sevilha, posteriormente transformado em torre sineira da catedral.

Para João Moura Reis, um dos trabalhos mais “marcantes” deste conjunto é um quadro de uma simbólica muito própria, com três cores (“o verde da esperança, o vermelho da força e do sangue, o amarelo do idealismo), com três cravos (“com todo o simbolismo do três, da Santíssima Trindade às três luzes”), com o L, “elo de liberdade”, numa composição pensada para assinalar os 50 anos do 25 de Abril.

Para ver há ainda uma aguarela, uma única, intitulada “Dois Caminhos”, pintura sumi-ê, três representações de arte digital (“nft”) e um quadro inacabado, com os visitantes a serem convidados a pegar num pincel e deixar um traço. “Peço que deixem um traço e talvez contribua para despertar o interesse pela pintura”, resume.

MAKE LOVE, NOT WAR

A par das telas abstracionistas, o sumi-ê, técnica ancestral de desenho monocromático, baseado no uso da tinta da china, original da pintura chinesa e introduzida no Japão em meados do século XIV, ocupa lugar de destaque na exposição patente em Estremoz. “É uma técnica do essencial, contemplativa, que habitualmente era feita pelos monges”, conta o artista, apontando para um quadro com bambus e uma pequena ave, não sem chamar a atenção para um carimbo colocado em todos os quadros. “Todos os pintores de sumi-ê têm carimbo com carateres chineses. Este é o meu, o mais adaptado possível para dizer make love, not war”.

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