Joaquim Murale. Morreu o poeta que escrevia “para mudar o mundo”

Nascido em Estremoz a 18 de março de 1953, Joaquim Murale publicou poesia, romance, contos, dramaturgia, tornando-se numa figura incontornável da literatura portuguesa. Morreu em casa, aos 71 anos, a dias antes de apresentar o seu mais recente livro na Casa do Alentejo. Luís Godinho (texto)

Em Até ao Último Sopro (2020), há um poema no qual Joaquim Murale escreve que a poesia “come-se/ bebe-se/ respira-se/ fornica-se/ usa-se em todas as coisas mais ou menos [extra]ordinárias/ veste-se da cabeça aos pés”. Gostava de tratar os livros por “filhos” e, como adiante se verá, teve muitos ao longo da vida. Mas já não assistiu ao nascimento do último, O Cio da Serpente, cujo “parto” chegou a anunciar na sua página de Facebook: “É com imensa alegria que vos anuncio que O Cio da Serpente, o meu novo livro de poesia, será lançado em Lisboa, no próximo dia 8 de junho, um sábado, pelas 16h00, no espaço acolhedor da biblioteca da Casa do Alentejo. A vossa presença é muito importante para mim, pelo apoio e carinho que representa e pela força que me dá, mas também para o meu novo filho que, pelas vossas mãos, ganhará o mundo com maior ousadia e segurança”. A morte trocou-lhe as voltas.

A informação de que o poeta morreu chegou através da Lincemoz, a Liga dos Naturais e Amigos do Concelho de Estremoz, que reúne boa parte da diáspora estremocense residente na Área Metropolitana de Lisboa. “A direção”, referia essa curta mensagem de correio eletrónico, “informa que o seu sócio, poeta Joaquim Murale, faleceu inesperadamente no dia 26 do corrente [mês de maio]”. Mas acrescentava que o lançamento de O Cio da Serpente, anunciado para 8 de junho, se manteria inalterado, agora com a dupla finalidade de apresentação de um livro novo e de homenagem póstuma ao seu autor.

“A obra de Joaquim Murale, no seu conjunto, deixa-nos um alerta mas também uma mensagem de esperança: podemos mudar o mundo! Isto não é um exagero retórico. Podemos mesmo!, e é urgente!, missão para todos os que – como ele dizia – não se rendem, que não se humilham, nem aceitam as muitas formas de estar morto”, diz o editor Jorge Castelo Branco, que num texto introdutório a O Áspero Tempo das Marionetas (2022) considera a obra literária de Murale como estando “inequivocamente comprometida com valores de justiça social e empenhada na edificação de valores de rutura”. Uma obra “comprometida, igualmente, com princípios essenciais de coerência”, e que por isso “é uníssona, sólida e perturbante”.

Pseudónimo literário de António José Rocha, Joaquim Murale nasceu em Estremoz a 18 de março de 1953, aqui tendo descoberto nas primeiras letras, muito por “culpa” da biblioteca itinerante da Gulbenkian. Aos 14 anos acompanha a família para a periferia da capital, em busca de melhores condições de vida, tendo começado a trabalhar de forma precoce, com apenas 16 anos. Os estudos, esses, só os retomaria mais de duas décadas depois, licenciando-se aos 40 anos em psicologia social e das organizações, no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA).

Os livros de poesia Do Fogo e da Água (1977) e Erva de Agosto (1979) foram os primeiros que publicou, lançando em 1980 o seu primeiro texto para teatro, Ao Atiçar do Lume (1980), premiado pela Secretaria de Estado da Cultura, e outro livro dramatúrgico, Diálogos da Sala de Fumo (1982), a que se seguiram mais de duas décadas de silêncio. Regressaria à edição em 2005, com um primeiro romance, Dou Este Mar por um Céu de Andorinhas, e depois Há Sempre um Sonho no Enquanto” (2006) e outras dezenas de obras, tocando os mais diversos géneros literários, do romance à poesia, dos contos ao teatro.

“Escrevo para mudar o mundo”, disse Joaquim Murale numa entrevista ao Jornal de Notícias em 2017, uma das poucas publicações que assinalou a sua morte: “Autor de uma obra extensa que fazia a apologia da dignidade humana e procurava combater as desigualdades sociais, Joaquim Murale entendia a literatura como um instrumento de transformação das consciências”. Veja-se, por exemplo, um poema de 2023 no qual regista que o Alentejo, “depois dos anos da hedionda tirania”, continua a “expulsar filhos” e “agora vive de escravizar imigrantes”.

Foi o padre Mário Pais de Oliveira, no prefácio a De Riso Largo Como a Lua Plena (2014), quem sublinhou estarmos “perante um autor e uma escrita em que a ficção consegue dizer a realidade tal e qual ela é, ainda melhor do que uma qualquer grande reportagem de jornal, de revista ou de tv”, pois “os olhos da mente cordial de Joaquim Murale conseguem ver a realidade que é mantida cativa, sequestrada, sob o manto ideológico com que ela sempre nos é apresentada”.

Uma observação que o próprio autor não teria dificuldade em subscrever, ele que numa das últimas entrevistas [a Sérgio Almeida, JN, 2022] se assumia, não sem alguma amargura, como um dos herdeiros da tradição “realista” da literatura portuguesa: “Temo que possa perder-se! Vejo as novas gerações muito acomodadas quando o realismo implica denúncia, confronto e, consequentemente, sofrer na pele as consequências: a censura do silenciamento! Hoje busca-se fama e sucesso, que são legítimos, mas quase sempre inférteis. Um escritor realista nunca será best-seller, por sublime que possa ser a sua escrita”.

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