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Legislativas/24: o tsunami, a norma que comanda o mundo – e ‘clash’!

Pode dizer-se que as vantagens refletidas no PIB não se refletem no quotidiano da vida. Pior: agudizam as dificuldades de quem se sente na base da pirâmide social, criando um ressentimento enorme e só ultrapassável mediante uma negação identitária simples e, naturalmente, redutora. Silvério Rocha Cunha* (análise) e Miguel Figueiredo Lopes ** (fotografias)

1 – Os partidos políticos e os dilemas da democracia

As eleições legislativas de 10 de março passado vieram levantar algumas interrogações importantes para a compreensão do nosso sistema democrático. O teórico político Norberto Bobbio definiu um dia “democracia” como sendo o “conjunto de normas para solucionar conflitos sem derramamento de sangue”. Aludia, assim, à necessidade de estabilidade, certeza e segurança que todas sociedades experimentam.

É certo que há algo mais para além desta ideia minimalista de democracia, há ideais e valores que completam e acrescentam valor à democracia: racionalidade, igualdade, participação, justiça, entre outros. E é por isso que a democracia é difícil: por um lado, deve respeitar certos procedimentos que garantem a veracidade da vontade popular num determinado momento; por outro, não pode abdicar de certos valores que não só conferem “autenticidade” a essa mesma vontade, mas também mantêm a natureza essencial da democracia.

Ora, da tensão entre simples procedimentos e valores substantivos nascem polémicas, impasses e dilemas. Conhecemos mecanismos democráticos limites? Pode um povo “escolher” mecanismos redutores da democracia que ele é chamado a exercitar? Num mundo que tem vindo a assistir a uma clara erosão da democracia representativa tradicional, pode pensar-se que nos encontramos perante o esgotamento dos regimes democráticos de matriz liberal.

2— As eleições e o enigma que contêm

Os resultados eleitorais foram relevantes por se ter assistido: (i) ao ‘tsunami’ que se traduziu numa subida expressiva do Chega; (ii) a uma vitória magra da AD; (iii) a uma resistência relativa do PS; (iv) a percentagens cinzentas para os restantes partidos minoritários (com exceção do Livre). Paralelamente a estes resultados verificou-se uma diminuição da abstenção.

Assim, levantam-se algumas questões importantes para o tempo histórico-político em que vivemos. Não caberá neste texto pensar a longa duração, mas talvez seja útil tentar perceber a sua importância para o tempo intermédio da conjuntura, pois é a partir daqui que se podem observar mutações consistentes. Não importa tanto o tempo do simples momento. Para o que aqui nos interessa este último tempo político está recheado de episódios que capturaram a opinião pública e serviram de alimento ao dispositivo mediático, sendo explorados, outrossim, pela retórica instrumental das forças políticas.

Incluem-se neste tópico as contradições dentro do Governo de António Costa, os efeitos da operação ‘Influencer”, o crescente intervencionismo do Presidente da República, além do momento internacional e suas circunstâncias imediatas (guerras Ucrânia/Rússia e Israel/Palestina e suas sequelas). O tempo polí- tico do momento é superficial, depende de outros momentos a montante.

As duas grandes questões que têm mais interesse são, portanto, as de saber: (i)se existe uma efetiva fragmentação do sistema partidário a substituir a anterior configuração política; (ii) se esta fragmentação constitui uma alteração estrutural.

Quanto à primeira, é questão de algum modo retórica. Com efeito, o facto de não existir maioria absoluta de um só partido não é uma novidade do sistema político português após o 25 de Abril. Durante algum tempo, recorde-se, atribuiu-se ao sistema político decorrente da Constituição de 1976 a impossibilidade da existência de governos de maioria absoluta estáveis. Esta ideia desapareceu com as maiorias absolutas de Cavaco Silva, José Sócrates e António Costa. Mas foram frequentes maiorias relativas. A diferença residiu, sim, num contexto em que existia um partido de massas forte à esquerda (PCP) e um partido à direita (CDS) que fazia o contraponto e teve durante algum tempo votações apreciáveis.

Eram tempos em que, por razões que adiante referirei, os partidos denominados ‘catch-all’, e com capacidade de atração no centro político (PS e PSD), podiam assumir vitórias sem maioria absoluta sem que isso provocasse fissuras importantes na lealdade do seu eleitorado que era transclassista e relativamente homogéneo no plano territorial. O compromisso era sempre possível porque as referências eram, em ambos os lados, sólidas.

Mas o mundo mudou. Com a queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da URSS (1991), começou a verificar-se uma viragem à direita da social-democracia europeia, acompanhando a viragem à direita dos partidos centristas-liberais (de que é um sintoma o abandono dos ideais substantivos da democracia-cristã), passando a existir, quer uma ostracização de algum modo “consuetudinária” da esquerda clássica, quer uma disputa acesa dos dois primeiros blocos relativamente ao eleitorado menos consistente, denominado“centrista” mas sem referências especificamente ideológicas.

Aumentou, gradualmente, a crispação política, inclusivamente porque aumentou igualmente a relativa indiferenciação entre estas forças partidárias. O enfraquecimento dos partidos de massas, a debilidade dos antigos partidos de quadros, a diluição ideológica dos partidos tradicionais, constituíram consequências da globalização vincadamente económica-instrumental, despida de valores políticos liberais ou sociais-democratas, que colocou em crise o paradigma democrático fundado no “consenso” obtido depois de 1945 entre centro-direita e centro-esquerda.

A globalização desregulada provocou profundas alterações nas correlações de forças, diminuiu o espaço de manobra dos Estados soberanos, alterou o “Espírito do tempo”, alterou a escala de compreensão entre blocos culturais, tornando paradoxalmente mais tensas as relações políticas, porquanto as categorias político-ideológicas internas nada têm a ver com as categorias da política internacional, pois esta está subjugada a pressupostos político-culturais e até antropológicos mais primitivos. Ainda hoje é possível parafrasear Bismarck quando disse que a política internacional é, em boa medida, uma questão de poder, não de Direito, apesar da crescente importância da perspetiva jurídica.

Deste contexto global tem resultado uma profunda derrelicção do político, abalando as tipologias que vinham a durar desde 1945 e até antes. Portugal acabou por acompanhar esta crise algo generalizada, na qual parece haver oscilações do “pêndulo da História”. Estas eleições trouxeram consigo o lastro da crise financeira que começou em 2008, os efeitos da precariedade sociocultural que se acentuou, a crispação entre os dois principais partidos do “arco de governabilidade” no nosso país, os efeitos psicossociológicos da pandemia de covid-19 (que ainda estarão por perceber no seu conjunto) e, enfim, a fragilidade da União Europeia frente a um mundo de novo multipolar e aparentemente mais anárquico.

Qual a influência deste ambiente nos sistemas políticos? Basicamente, o primado do voluntarismo político, abrindo caminho ao inexatamente chamado “populismo”. É a votação do Chega expressão direta disto? Não o creio, pelo menos na sua totalidade. Na verdade, o populismo é um fenómeno antigo. Para as democracias liberais o “povo” é, embora titular da soberania, uma ideia “obscura” onde convivem visões muito diferentes desta entidade. O povo representa ideias abstratas tais como postulado da organização política (uma ideia ambígua), como autoritarismo sem mais, como identitarismo absoluto, agarradas a palavras como “nação”, “plebe”, “turba”, “multidão”, e sempre que se apõem a “povo” ideias como “mundialidade”, “progresso”, “humanismo”, “racionalidade”, descobrem-se outras como “sangue”, “antepassados”, “emoção”, “interesse”. O populismo serve várias visões, vestindo diversas indumentárias.

Em termos genéricos podemos distinguir dois tipos de populismo: (i) o populismo participativo e (ii) o populismo delegativo. O primeiro está relacionado com a “voz do povo”, com reformas institucionais proclives a mandatos curtos, limitação destes, no limite a sua fácil revogação, redução dos privilégios das “elites”, uso alargado de referendos, etc. Sofre todos os inconvenientes da sua “pureza”, sintetizados na constatação de que não existe uma só voz do povo, antes existem vozes muito diferentes, com interesses frequentemente antagónicos.

O “povo” é mais plural do que ele mesmo pensa. O populismo delegativo segue um outro caminho radicalmente diferente: o povo cede a sua pureza a quem o governe “bem”. O grande ponto fraco desta posição é que governar “bem” pode ser, não apenas interpretado de diferentes maneiras, mas ainda pode permitir que quem detenha o poder não assegure o princípio (populista!) de restringir a manutenção de si mesmo no posto de governar… Normalmente, o populismo delegativo tende a abolir as garantias do Estado de Direito, bem como as liberdades públicas e a tripartição dos poderes. O paradoxo do populismo em geral explica-se pelo seu monismo, ou seja, pela ilusão em crer que existe uma prévia “coesão bondosa” das massas e propagar isso como ideologia.

Relativamente à expressiva votação do Chega, talvez seja de aguardar por estudos sobre a origem dos seus eleitores. Só a partir daí poderemos estabelecer pontos de análise aptos para perceber qual o seu núcleo fundamental. Olhando para os resultados eleitorais, é de crer que tenha recebido votos de partidos como o PSD, o PS e o PCP, além de votos provenientes da abstenção, pois a perceção que surge como mais provável é a de ter votantes por convicção e votantes que exprimem os receios, o mal-estar, o sentimento de uma vida cada vez mais difícil neste momento.

O ‘tsunami’ Chega coloca, em consequência, no tabuleiro político algumas interrogações a que só o tempo poderá responder. De facto, o partido que sofre mais a pressão desta votação é o PSD/ AD, porque a estratégia de André Ventura é a de, com base nos resultados eleitorais brutos, destacar a existência de três blocos monolíticos (direita, centro e esquerda) onde o seu partido se constitui como detentor absoluto do primeiro. Esta estratégia tem como finalidade reduzir o espaço do PSD ao que ironicamente já foi apelidado de “extremo centro”, concorrendo aí com o PS.

É certo que se trata de uma ‘fast strategy’, que em simultâneo necessita de tempo “rápido” para se manter e de tempo mais longo para calibrar uma direção eficiente. Neste sentido, pode ser expectável que, juntando a dinâmica de vitória com a proximidade das eleições europeias, seja o Chega o principal interessado na instabilidade possibilitada pela maioria relativa do PSD, pois Ventura sabe que o tempo obrigará o seu partido a algumas diferenciações que poderão desgastá-lo, sobretudo se Montenegro agir com rapidez e aplacar algumas reivindicações sociais e neo-corporativas que ficaram pendentes com o governo PS e, com isso, sanar parte do mal-estar criado.

3— A norma que comanda o mundo

Mas o ‘tsunami’ Chega tem outras implicações porque coloca um desafio para além dele: a necessidade de um exercício de auto-compreensão da sociedade portuguesa. Como mudou o panorama eleitoral tão drasticamente de 2022 até agora? Talvez seja produtivo usar como instrumento de interpretação um conceito originário da teoria do Direito (explicado por H. Hart). Como é possível que cada um de nós “compreenda” em termos básicos e automáticos como justo/injusto, lícito/ilícito, bem/mal, uma qualquer ação na sociedade que habitamos? É possível porque todos nós fomos aculturados numa sociedade que, como todas, tem mecanismos de funcionamento, projeções simbólicas, formas de moralidade convencional, aptas para conferir sentido ao sistema em que vivemos.

Sem efetuar juízos de valor absolutos, pode dizer-se que aos mecanismos do hábito de obediência (a que se adere por medo e por convicção) se ajustam outros mecanismos culturais que desaguam num “caldo de identidade” que mantém o sistema estável. A este conjunto de mecanismos, derivados da prática ético-social, chamou Hart a “norma de reconhecimento”»”, uma norma invisível que está na cabeça de cada indivíduo sem ele saber e é partilhada genericamente pela sociedade. Todos “sabemos”, por exemplo, que é proibido matar e roubar, mesmo que a esmagadora maioria da população nunca tenha lido o Código Penal. Esta norma não é estática, encontra-se em contínua, mas lenta, evolução, por isso mesmo aparentando ser uma garantia de uma sociedade estável.

Ora, o tempo em que vivemos é contraditório. Vivemos numa sociedade ultraliberal e consumista que não dá meios suficientes para o acesso a bens básicos. Uma sociedade paradoxalmente individualista mas interdependente e crescentemente controladora, compressora e acelerada na adaptação a trabalhos desprovidos de valor, além de precária ainda que ande a pregar uma “liberdade” abstrata e atomizadora de cada indivíduo na sua existência. Boa parte destas razões podem organizar-se sob a égide de um pensamento político coerente e sólido, mas o facto é que existem muitas razões que se constituem mais como queixas e revolta contra uma sociedade que surge como simplesmente injusta, embora demasiado complexa para que possam surgir soluções evidentes e imediatas.

Para o “homem da rua”, cidadão que é tratado como reles indivíduo, existem muitas razões para acreditar numa sociedade desorganizada, mesmo quando boa parte dessa desorganização é explicável, “racionalmente”, por mecanismos de mercado cujo fundamento é, no entanto, obscuro e de algum modo incompreensível. Basta pensar na reação ambivalente que muitas pessoas sentem relativamente a imigrantes, que vêm fazer muito do que os portugueses não querem ou não podem fazer, e a custos baixos (por vezes em condições de exploração), mas cujas particularidades culturais infundem receio e/ou rejeição.

Em certo sentido, pode dizer-se que as vantagens refletidas no PIB não se refletem no quotidiano da vida. Pior: agudizam as dificuldades de quem se sente na base da pirâmide social, criando um ressentimento enorme e só ultrapassável mediante uma negação identitária simples e, naturalmente, redutora. Daí resulta uma grande propensão para uma dissociação entre o “sentir” e o “pensar”, a “negação” e a “compreensão”.

4— Clash!

Todas estas contradições desaguam num emaranhado social invisível, hiper-mediatizado, hiper-conectado, empobrecendo a autorreflexão que, mal ou bem, permitia a “digestão” e assimilação de narrativas estáveis nas sociedades anteriores à explosão das novas tecnologias. Como já notou Christian Salmon, vivemos na era do Clash! Ou seja: uma era de um “império sem fronteiras”, onde a explosão de mensagens que mais não são do que palavras de ordem desacredita qualquer veracidade, embora permita a auto-afirmação de cada indivíduo, já que cada um pode emitir a sua sensação com a dupla impressão de que todos são iguais e as verdades são curtas, simples e básicas.

Na era em que a política tinha de possuir uma narrativa consistente, as perguntas que se faziam aos detentores do poder eram mais ou menos estas: que poder tens e donde veio?, no interesse de quem o exerces?, perante quem és responsável? A era do Clash! coloca o indivíduo perante a simplicidade de Trump quando afirmou que, sendo-se hiper-conhecido, tudo se pode fazer. Será mesmo assim? Só o tempo o dirá.

Mas o verdadeiro desafio estará em saber se, no íntimo de cada cidadão-indivíduo, será possível reconhecer que, enquanto cidadão, detesta aquilo em que a sociedade se tornou, embora saiba, enquanto indivíduo, que a sociedade de algum modo sempre assim foi.

* Professor da Universidade de Évora, diretor do programa de doutoramento em “Teoria Política, Relações Internacionais e Direitos Humanos”

** Presidência da República

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