Luís Godinho: “Aristides e os votos”

A opinião de Luís Godinho, jornalista e diretor da "Alentejo Ilustrado"

No século V a.C., os atenienses criaram um sistema bastante peculiar de votação, o ostracismo, de que nos chegaram porme- nores através de Plutarco e de Aristóteles, entre outros. Não é deles que vos quero falar, é de Aristides. Mas primeiro há que explicar o que é isso do ostracismo. E, antes, é necessário saber que praticamente todas as semanas os cidadãos de Atenas — entenda-se, os homens que já tivessem completado os rituais de passagem para a cidadania, incluindo o serviço militar —, reuniam-se em assembleia, chamada eclésia, para decidir as coisas importantes da pólis: votar leis e decisões políticas, escolher magistrados, decidir a guerra.

A maioria das votações era feita de braço no ar. Não acontecia assim uma vez por ano, lá pelo verão, quando a eclésia se dedicava a votar o ostracismo. A cada um dos cidadãos com capacidade eletiva era então entregue um fragmento de cerâmica, denominado óstraco (‘óstrakon’), no qual poderiam escrever o nome de um político que quisessem ver pelas costas.

Os óstracos eram depois empilhados. Se houvesse mais de seis mil a votação era considerada válida. E o político cujo nome mais vezes aparecesse escrito nos pedaços de cerâmica teria dez dias para se “pôr ao fresco”, partindo para um exílio de dez anos, ainda que sem perda de bens, nem desonra formal. Era ostracizado.

A ideia foi a de criar um mecanismo legal e não violento para prevenir o regresso da tirania. Daí que o primeiro ostracizado tenha sido Hiparco (filho de Pisístrato, não confundir com o astrónomo que inventou o astrolábio), suspeito de querer impor o regresso à tirania.

Começou, pois, por ser um instrumento de defesa da democracia. Bem sei que é grande a tentação de começar a defender o ostracismo quando olhamos para o exercício de alguns políticos mais interessados no ego que na defesa da causa pública, ou quando nos vemos confrontados com o discurso de ódio dos radicais populistas de extrema-direita, mas, como disse, não é exatamente disso que vos quero falar, antes do exemplo de Aristides.

Nascido numa família pobre, Aristides de Atenas fez-se um importante estadista e estratego, famoso pela sua ação na guerra contra os persas. Desempenhou diversos cargos públicos e ganhou a alcunha de “O Justo”. Conta-se que, num desses dias de votação na eclésia, Aristides, conhecido pela sua integridade e imparcialidade, caminhava entre a multidão quando um camponês analfabeto, não o reconhecendo, lhe pediu ajuda para escrever um nome no óstraco.

Um nome? “Aristides”, sugeriu ele. Surpreendido com a resposta, o camponês perguntou: – “Fez-te algum mal esse Aristides?”. E o homem, faltando à verdade, respondeu: “Não o conheço, mas estou farto de o ouvir chamar de Justo”. Sem dizer mais nada, Aristides escreveu o seu próprio nome e devolveu o óstraco ao camponês.

Claro que Aristides, “O Justo”, apesar do prestígio e dos cargos públicos que exerceu, morreu na miséria, sem ter deixado dinheiro suficiente para pagar o funeral. Mas é um exemplo que bem poderíamos levar em conta no momento de votar, 2500 anos depois, valorizando fatores como a integridade, a equidade, o espírito de missão, o respeito pelo processo democrático, a humildade. Utilizemos o voto para pôr de lado a berraria e ajudar a construir a República livre, igual e fraterna que tanto ambicionamos.

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