Manuel Branco: “O Estado Novo escondia os deficientes de guerra”

Criada há 50 anos, a Associação de Deficien- tes das Forças Armadas tem um já longo historial na procura de respostas para os “gravíssimos problemas” dos mais de 30 mil homens que sofre- ram ferimentos graves na chamada Guerra Colonial. Há problemas que ainda persistem. Entrevista com Manuel Branco, historiador e presidente da Delegação de Évora da ADFA.Ana Luísa Delgado (texto)

A Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA) assinala 50 anos no próximo dia 14 de maio. Foi criada logo após o 25 de Abril. Quais os motivos que levaram à sua constituição?

Bom, a primeira grande razão é óbvia, porque a guerra ao longo dos seus 14 anos foi provocando, para além dos mortos, muitos feridos e muitos com ferimentos gravíssimos, para além dos psicológicos… ferimentos físicos gravíssimos, cujo tratamento demorava anos e que deixava marcas irreparáveis, com muitos deficientes amputados das pernas, dos braços, muitos ficaram cegos… muitos morreram logo, outros ficaram com deficiências, muitos outros, às centenas e aos milhares no país inteiro e nos hospitais. Foram-se acumulando no Hospital da Estrela, em Lisboa, que era uma unidade de referência das Forças Armadas, que tinha três edifícios, e depois na Rua da Artilharia. Uma coisa chamada “Anexo”, para onde eram encaminhados aqueles que depois prolongavam durante anos e anos os tratamentos; e tinha ainda um depósito, que era assim mesmo chamado, o “depósito de indisponíveis”, no antigo Quartel da Graça, no antigo Convento da Nossa Senhora da Graça de Lisboa, para aqueles que só precisavam de ir à consulta de vez em quando. Mas que os tratamentos se arrastavam e que não precisavam de estar acamados.

Daí a urgência da criação da Associação?

Sim, esse estado de coisas levou os deficientes a perceberem que já não havia respostas para eles porque havia já uma organização de militares, digamos assim, que era a Liga dos Combatentes, mas que não respondia em nada às necessidades destes deficientes e estava enfeudada ao poder. Digamos que o Governo é que mandava na Liga dos Combatentes. E, portanto, houve a necessidade de criar uma estrutura que desse resposta aos gravíssimos problemas que estes deficientes tinham e daí ter-se começado a fazer reuniões, mesmo antes do 25 de Abril, de tal maneira que logo a 14 de maio estava madura a ideia de criar uma associação.

Que nasceu em Lisboa.

Claro, em Lisboa, porque era onde se acumulavam estes milhares de deficientes nos hospitais e outros acabavam até por levar a sua família, para estarem perto dos hospitais militares. Bom, a ADFA anunciou-se publicamente e o primeiro grande efeito que teve foi mostrar ao país que havia todos estes deficientes. Porque o anterior regime, o Estado Novo, escondia estes deficientes e as próprias famílias tinham vergonha dos seus maridos estropiados. E, portanto, havia uma espécie de segregação social, eu diria, natural, naquele estado de coisas que era o fascismo. O primeiro grande efeito da associação foi dizer que toda esta gente existia, que tinha direitos e que a sociedade tinha deveres para com todos estes deficientes… uma realidade da qual o país nem sequer tinha consciência.

E também a reparação, calculo?

Sim, o segundo objetivo foi lutar para que o Estado se responsabilizasse pela recuperação e pela integração na sociedade destes deficientes. A não ser os surdos e os cegos, que já tinham algumas associações, todos os outros deficientes físicos eram, digamos assim, uma espécie de vergonha social. Quase não existiam. E nós quisemos impor-nos e impusemos. Impor-nos. Daí a luta permanente para criar legislação que nos protegesse, que nos desse direito à saúde, isto é, que o Estado se responsabilizasse pela nossa saúde, pelo direito a uma indemnização pelos danos que o Estado nos tinha causado. Porque a esmagadora maioria destes deficientes tinham sido retirados às suas famílias para ir para a tropa, para ir para a guerra. Não eram profissionais da guerra, não eram os militares da carreira. Esses raramente ficavam feridos, porque quem ia para o terreno, quem ia para o mato, para as emboscadas, para as operações, eram os soldados do contingente geral, que tinham ido para a tropa sem serem militares de carreira.

E estamos a falar de quantos milhares de homens?

Não se sabe bem… dos mortos a coisa aproxima-se de nove mil, do contingente português, porque nos últimos anos da guerra já não havia jovens aqui da Metrópole que chegassem para as três frentes de guerra, onde globalmente havia cerca de 150 mil homens, permanentemente em armas. Já não chegavam os jovens da Metrópole então começaram a incorporar-se elementos indígenas, digamos assim, oriundos da Guiné, Angola e Moçambique, nas tropas da guerra portuguesas.

Quantos deficientes?

Deficientes físicos graves foram cerca de 30 mil. A que se somam outros muito mais ligeiros, e depois os deficientes com problemas psíquicos. Passados todos estes anos continuamos a ter dificuldade para referir números… os problemas psicológicos, só muito mais tarde, só muitos anos depois da guerra acabar, é que foram considerados deficientes de guerra, e isso inclui todos aqueles que vieram com perturbações psicológicas. E são muitos. Os estudos académicos estimam que 50% dos que andaram no mato, a combater, têm problemas dessa ordem, uns mais graves que outros, naturalmente.

Entretanto a ADFA é criada e apresentada, qual foi a reação?

É uma belíssima pergunta… Foi uma surpresa, um choque, também um alívio para as próprias famílias que aqueles cidadãos se mostrassem como cidadãos de parte inteira. E não envergonhando as famílias, porque nas aldeias era isso que acontecia. Nós devemos ter a coragem, às vezes, de afirmar estas coisas, não é? E, portanto, os militares, mesmo depois da Revolução de Abril, nem todos aceitavam bem esta coisa de uma associação de deficientes. Até nos aconselhavam, quase, a integrar-nos na tal Liga dos Combatentes. Diziam que era melhor isso a uma associação dos deficientes, que a Liga iria tratar de nós… não tratava nada, até porque era controlada pelos governos. Nós fomos reconhecidos e transformados em parceiros para dialogar sobre o problema dos deficientes, a partir do momento em que o primeiro-ministro Vasco Gonçalves assumiu, ele próprio, que toda esta gente tinha de ser protegida pelo Estado. Devemos ao General Vasco Gonçalves essa atitude, praticamente de rutura, mesmo dentro do Exército saído do 25 de Abril. Foi a partir daí que o diálogo passou a ser de parte inteira, que passámos a ser aceites junto dos governos, como tendo o direito de dialogar e de apresentar as nossas reivindicações.


Foi inaugurada em Lisboa?
Era onde estava esta gente toda, muitos deles ainda nos hospitais, e porque é onde está o Governo. Ocupámos a antiga sede da Mocidade Portuguesa, perto do Rossio, também contra a vontade de muita gente, que nunca aceitou que nós, deficientes, ocupássemos aquele palácio histórico dos, digamos, conspiradores da Revolução de 1640. Depois acabaram mesmo por nos tirar de lá, no tempo
do Cavaco Silva, entregando-o à Sociedade Histórica da Independência Nacional, que é uma sociedade que preserva muito o modelo da história antiga. Fomos para outro edifício criado de raiz, já sem barreiras arquitetónicas, e temos 12 delegações espalhadas pelo país, que tentam cobrir as necessidades dos deficientes em todo o território.

No Alentejo, temos a delegação de Évora…
… que responde aos deficientes praticamente do Alentejo todo. E em Estremoz temos sócios muito empenhado nos trabalhos da associação. Aliás, o nosso presidente da mesa da assembleia geral é o Dr.º Inácio Grazina, que já foi diretor do Brados do Alentejo e o primeiro secretário é o João Jaleca, chefe de redação do jornal.

Os problemas que se colocavam há 50 anos foram resolvidos ou ainda há muito por fazer?
A maior parte dos problemas nunca foi resolvido e nunca serão, porque um sócio que tenha ficado cego não vai recuperar a vista. Um sócio que tenha perdido uma perna, essa não irá cresce. Os problemas não se resolvem. É claro que temos procurado que o Estado crie legislação que nos proteja. Dou-lhe exemplos… um deles é tratar da nossa saúde, que foi muito prejudicada, muito abalada, com a deficiência e com a guerra. Portanto, nós, os deficientes das Forças Armadas, temos direito a tratamentos gratuitos nos hospitais do Estado. No caso de um deficiente que tenha prótese, essa prótese não dura para a vida inteira, tem que ser substituída. E esse tipo de compromisso o Estado assume.

E há a contagem do tempo de serviço.
Sim, foi uma luta que durou anos. Como é que se pode pôr o problema mais facilmente? Imagine um jovem que já é mecânico de automóveis ou trabalha numa oficina, ou na agricultura. E aos 20 anos o Estado foi tirá-lo de lá, da oficina, para ir para a tropa e depois para para a guerra. E esse jovem ficou deficiente, já não podendo ir trabalhar para o mesmo sítio, por não ter condições físicas. Ou que ficou desempregado durante muitos anos e, às tantas, nunca mais arranjou emprego. Quer dizer, ele estava na oficina e já descontava impostos para a Segurança Social, teve de deixar de descontar porque o Estado o foi buscar e depois o Estado não lhe contava o tempo de serviço da tropa. Portanto, este tipo de problemas é que nós fomos resolvendo a pouco e pouco, obrigando o Estado a criar legislação para dar cobertura a estes problemas que o próprio Estado tinha criado.

Vão ser agora assinalados os 50 anos da ADFA. O que está previsto?
Olhe, já começámos as comemorações, fizemos um programa para ir às escolas falar com os alunos sobre este problema dos deficientes das Forças Armadas. Estamos a ir às escolas de todo o país falar nesta problemática da associação dos deficientes e dos deficientes das Forças Armadas. Já tivemos várias iniciativas, vamos ter outras duas muito importantes: no próprio dia 14 será inaugurada uma exposição sobre a Guerra Colonial, material dos soldados, desde as malas onde levavam a roupa para a guerra, até os aerogramas que escreviam para cá, para a família, as armas… e teremos a cerimónia solene da comemoração dos 50 anos da criação da associação, onde irá estar presente o Presidente da República. Será no auditório da Academia Militar em Lisboa.

Qual é o balanço que faz destes 50 anos?
É um balanço positivo por uma razão fundamental: nunca nos dividimos. Só existe uma associação dos deficientes das Forças Armadas. Ao contrário de algumas outras áreas, como os sindicatos, em que algumas forças políticas procuraram dividir, no nosso caso não foi criada mais nenhuma associação. Portanto, esse foi o nosso primeiro grande triunfo, nunca nos deixámos dividir, o que quer dizer que somos o interlocutor junto do Estado para os problemas dos deficientes e que não há divisões entre nós. Depois, foi a criação da ideia de cidadania também para os cidadãos que transportam alguma deficiência. Nós até não deveríamos dizer que aquela pessoa é deficiente, mas que tem uma deficiência, é um cidadão de parte inteira. E ainda a criação de legislação que nos protege e que depois serviu também para outros deficientes civis. Há várias análises que podemos fazer da nossa história, positivas, naturalmente, embora continuemos ainda com problemas.

Tais como?
Imagine um grande deficiente que depois veio para Estremoz, ou outro local, que tem uma pequena pensão militar, mas em que muitas vezes a própria mulher teve de sacrificar a sua vida, a sua carreira, o seu trabalho, para apoiar o marido. Como ressarcir este esforço das mulheres que trataram dos deficientes ao longo da vida? É um problema que está ainda em aberto, sem resolução. Há deficientes que o Estado não considerou como sendo das Forças Armadas, mas atribuiu-lhes a categoria de deficientes em serviço. Alguns deles ficando deficientes na mesma emboscada, na mesma mina que outro que por um acaso burocrático foi classificado em serviço. E nos primeiros anos isso aconteceu com frequência, porque lá no mato, no meio da guerra, quem tratava dos primeiros papéis deste soldado que ficou deficiente era um alferes miliciano… esta expressão “em serviço” acabou por ser usada depois em Lisboa, nesta catadupa de milhares de processos, para o classificar deficiente em serviço e não deficiente em campanha, em combate direto com o inimigo. E isso criou uma divisão, em que muitos são deficientes em serviço, tendo uma pensão ínfima, ao passo que os deficientes em campanha têm uma pensão um bocadinho maior. Estes problemas continuam a tratar-se. Como o problema, por exemplo, da deficiência se agravar ao longo dos anos.

Créditos fotográficos: A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria

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