O terramoto eleitoral que abalou o bastião histórico da esquerda
As eleições legislativas de 18 de maio de 2025 inscrevem-se na história política portuguesa como o momento preciso em que o Alentejo deixou definitivamente de ser identificado e conotado como um bastião da esquerda política para quem acompanha a sua evolução democrática desde 1974. Aquilo que durante décadas constituiu o coração pulsante da esquerda portuguesa transformou-se numa região politicamente fragmentada, onde a extrema-direita conseguiu conquistar dois dos três círculos eleitorais – Beja e Portalegre –, ficando apenas Évora nas mãos do Partido Socialista.
Este resultado não pode ser analisado como um mero episódio conjuntural. Representa, pelo contrário, o culminar de um processo de erosão das bases sociais e políticas que sustentaram a hegemonia da esquerda na região durante meio século de democracia.
Para compreendermos a magnitude desta transformação, basta recordar que, em 2024, o PS venceu nos três círculos alentejanos, elegendo três deputados, face aos três do Chega e dois da AD. Apenas um ano depois, o cenário inverteu-se dramaticamente: o Chega passou a ser a força mais votada em Beja (28%) e em Portalegre (30%), enquanto o PS só conseguiu manter a liderança em Évora, com uma vantagem de apenas dois mil votos.
O colapso da esquerda tradicional
A análise dos resultados eleitorais revela uma realidade inquietante para os partidos progressistas. A CDU, herdeira histórica do antigo bastião comunista, registou uma queda vertiginosa em todos os círculos eleitorais: de 15% para 13% em Beja, mantendo-se nos 10% em Évora e descendo para menos de 6% em Portalegre. Esta queda confirma uma tendência de longo prazo que se tornou irreversível: desde 1976, quando o PCP obteve 126.265 votos no Alentejo, até 2024, a força comunista perdeu mais de 100 mil votos na região.
Mais preocupante ainda é a incapacidade demonstrada pelas forças de esquerda em reconhecer e responder adequadamente às transformações socioeconómicas que moldaram o território nas últimas décadas. O Alentejo de hoje não é o Alentejo rural e latifundiário dos anos 70, onde a luta de classes se expressava de forma evidente entre proprietários e trabalhadores agrícolas. A terciarização da economia, o êxodo populacional dos jovens, o envelhecimentodemográfico e a precarização laboral criaram novas contradições sociais que a esquerda tradicional não soube interpretar nem aproveitar politicamente.
A sedução populista nos territórios abandonados
O sucesso do Chega no Alentejo não pode ser compreendido apenas como um fenómeno de voto de protesto. Representa a capacidade do partido em capitalizar um sentimento profundo de abandono e marginalização que afeta vastas zonas do interior do país. Uma análise pormenorizada dos resultados permite identificar corretamente que o Chega obteve precisamente os melhores resultados nos distritos mais negligenciados pelo Estado em termos de obras e investimento público: Faro, Beja, Portalegre e Setúbal.
A estratégia discursiva do Chega conseguiu articular, de forma simplista, mas eficaz, as dificuldades concretas das populações com um discurso ‘anti-establishment’ que responsabiliza simultaneamente a “elite política lisboeta” e os “estrangeiros” pelos problemas locais. Esta narrativa encontrou terreno fértil numa região onde o encerramento de serviços públicos, a falta de médicos de família, a ausência de transportes públicos eficazes e a estagnação eco- nómica criaram uma sensação generalizada de desamparo.
Em Beja, por exemplo, a promessa não cumprida da requalificação do hospital, a não construção da A26, a degradação da linha ferroviária para Lisboa e a ausência de dinamização do aeroporto constituíram argumentos poderosos nas mãos da direita populista. O facto de estas carências persistirem durante os quase nove anos de governação socialista de António Costa forneceu ao Chega uma base material sólida para o seu discurso de rutura.
A resistência socialista: Évora como último reduto
A vitória do PS em Évora, embora apertada, merece uma análise cuidada por representar uma exceção à regra. Com pouco mais de 23 mil votos contra os cerca de 20.800 do Chega, os socialistas conseguiram manter a liderança num distrito onde tradicionalmente beneficiaram do peso eleitoral da capital de distrito e da presença da Universidade de Évora.
No entanto, mesmo esta vitória deve ser relativizada. A diferença de apenas dois mil votos e o facto de o Chega ter conquistado seis dos quinze concelhos do distrito demonstram que a hegemonia socialista está seriamente ameaçada. O crescimento exponencial do partido de André Ventura, que passou de uma força marginal para a segunda força política num só ciclo eleitoral, indica que o fenómeno populista tem raízes estruturais que transcendem as conjunturas políticas imediatas.
As causas estruturais da metamorfose
A transformação política do Alentejo não pode ser dissociada das políticas de desenvolvimento regional implementadas nas últimas décadas. A integração europeia, embora tenha atraído investimentos significativos através dos fundos estruturais, não conseguiu contrariar as tendências demográficas negativas nem criar uma economia dinâmica capaz de fixar a população jovem.
O modelo de desenvolvimento baseado no turismo e na agricultura intensiva mostrou-se insuficiente para gerar emprego qualificado e bem remunerado. Simultaneamente, a concentração dos investimentos públicos no litoral e nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto acentuou o sentimento de abandono das populações do interior.
A esquerda, habituada a interpretar a realidade alentejana através da lente do conflito tradicional entre capital e trabalho, não soube adaptar o seu discurso às novas realidades sociais. A emergência de uma pequena burguesia rural, de trabalhadores precários no setor dos serviços e de uma população idosa dependente de pensões criou novas clivagens sociais que escaparam às grelhas de análise tradicionais.
A fragmentação do sistema partidário regional
Os resultados das eleições de 18 de maio passado confirmam a emergência de um sistema político tripartido no Alentejo, onde nenhuma força consegue estabelecer uma hegemonia clara. Esta fragmentação, longe de representar uma democratização do espaço político, traduz-se numa instabilidade crescente que beneficia as forças mais radicais.
A incapacidade do PS e da AD em formar maiorias sólidas cria um vazio político que o Chega tem sabido aproveitar habilmente. O facto de este partido ter conseguido eleger deputados em todos os círculos alentejanos representa uma preocupante normalização do discurso de extrema-direita numa região com sólidas tradições democráticas.
Esta situação é particularmente grave se considerarmos que o Alentejo sempre funcionou como um laboratório de experiências progressistas em Portugal. Desde a Reforma Agrária dos anos 70 até às experiências de desenvolvimento local sustentável das últimas décadas, a região esteve na vanguarda das transformações sociais. A sua deriva para a direita populista representa, por conseguinte, uma perda irreparável para o campo democrático.
Os desafios da reconstrução progressista
Face a este cenário, as forças de esquerda enfrentam o desafio de reinventar por completo a sua estratégia política para a região do Alentejo. Não basta lamentar o passado ou culpar a ignorância dos eleitores. É necessário compreender as transformações profundas que moldaram o território e desenvolver propostas que respondam às legítimas aspirações das populações.
Isto implica, desde logo, uma análise crítica das políticas de desenvolvimento regional das últimas décadas e o reconhecimento de que o modelo de crescimento adotado não conseguiu contrariar as tendências de desertificação e marginalização. Implica também uma renovação dos quadros políticos locais e uma abertura a novas formas de participação democrática que ultrapassem os rituais eleitorais tradicionais.
O futuro da esquerda no Alentejo passa necessariamente pela sua capacidade de se afirmar como força de mudança e não apenas de resistência. Só uma esquerda renovada, capaz de conciliar a defesa dos valores democráticos com propostas concretas de desenvolvimento sustentável e justiça social, po- derá contrariar a maré populista que varreu a região.
O Alentejo de 2025 não é apenas o espelho das contradições nacionais, mas também o labora- tório onde se decide se Portugal conseguirá resistir à onda autoritária que atravessa a Europa ou se sucumbirá à sedução das soluções fáceis e perigosas. A resposta a este desafio determinará não só o futuro da região, mas também o próprio destino da democracia portuguesa.
Fotografia | António Pedro Santos(Lusa)/Arquivo