“Uma terrível atroz imensa Desonestidade Cobre a cidade.
Há um murmúrio de combinações
Uma telegrafia
Sem gestos sem sinais sem fios.
O mal procura o mal e ambos se entendem
Compram e vendem.
E com um sabor de coisa morta
A cidade dos outros Bate à nossa porta.”
Sophia de Mello Breyner Andresen ─ “Cidade dos Outros”, in “Geografia” (1967)
Nada mais há para dizer pois está tudo neste poema de Sophia, mas as regras editoriais pedem-me que diga alguma coisa. Afinal, não é disso que trata uma crónica de jornal?
Pois bem, comecemos pela desonestidade. Nas suas múltiplas formas e tentáculos (tal como o polvo) ela enche de chumbo os dias, sufocando quem a observa e se sente impotente perante a sua força manipuladora.
Vemo-la, está aí, em cada esquina (onde devia estar a amizade), a tentar manter o seu lugar de “senhora do mundo”. Cá por casa, como lá fora, vai tomando conta de uma sociedade onde tudo se “compra e vende”. Vai a espetáculos/programas televisivos, passeia-se pelas redes sociais, disfarça a sua ignomínia com trajes populistas e sorri muito às crianças.
Ontem como hoje, a todos engana. Vive do logro, do disfarce, da mentira, da vontade de ser “estrela por um dia”. E do desejo de acumular riqueza, muita riqueza, que se mostra nos conhecidos “sinais exteriores”.
A desonestidade intelectual, política, social, não é apenas característica de alguns indivíduos, ela tornou-se onda de grande dimensão na vida pública, ela contagia o ambiente e comanda o rebanho. Desenvolve-se nos pequenos grupos de interesses, nas várias “capelinhas”. E, o pior de tudo, está a “naturalizar-se”, a ser considerada “normal” e, portanto, aceitável.
Dir-me-ão “é a humana condição”. Não, não é! O que humaniza é a honestidade, a integridade, os “dias claros e limpos”. Esses são os que queremos à nossa porta. E disso, melhor que ninguém sabia Sophia, a poeta.