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Maria Leal da Costa. A escultura, esse “mundo infinito de possibilidades”

Em plena Serra de São Mamede, Maria Leal da Costa trabalha a pedra, o ferro e o bronze. “tudo se pode transformar nas nossas mãos”, diz a artista, entrevistada no seu Parque das Esculturas. “A arte é transformadora. Maria Luísa Ferrão (texto)

Maria Leal da Costa inaugurou recentemente um conjunto escultórico em homenagem ao médico renascentista Garcia de Orta, no Parque de Esculturas de Marvão, que gere desde 2016. A escultora inspira-se na natureza e na poesia para esculpir a pedra, o ferro e o bronze e acredita que a criatividade é fruto de muito trabalho. Um dos seus mais recentes trabalhos chama-se “Herbário de Garcia de Orta”, em homenagem ao botânico alentejano do século XVI.

O que a inspirou no processo de criação desta obra?

O facto de Garcia de Orta ter sido o médico e o botânico que foi no século XVI. O que ele construiu a nível científico e humano, o que nos trouxe do outro lado do mundo. Este memorial surge na sequência do projeto “Entre Diálogos”, promovido pelo Grupo de Amigos de Castelo de Vide, que visou marcar os 450 anos da sua morte. Inspirei-me no “herbário” que ele nos deixou, composto por ervas medicinais e aromáticas que atualmente utilizamos. Trata-se de um conjunto escultórico, composto por sete peças, feitas em ferro e em mármore, que reúnem três valores centrais na vida de Garcia de Orta: o conhecimento, a coragem e a persistência. Imaginar que viajou num barco até à Índia, rumo ao desconhecido, é já em si um propósito de enorme força interior que nos remete para um imaginário muito rico.

Como nasceu o seu interesse pela escultura?

Sempre gostei muito de desenhar e foi-me descoberta dislexia quando frequentava a segunda classe. A minha professora estimulou-me bastante através de jogos didáticos e, do segundo para o terceiro ano, cresci muito ao nível das artes. Depois tenho um pai e uma mãe que também eram artistas e, naturalmente, todo o ambiente em que vivi me influenciou neste aspeto. Penso que este contacto precoce com as artes é muito importante porque estas estão ligadas a todas as disciplinas, às ciências, matemática, biologia a tudo o que é natureza.

Ao longo do seu caminho artístico quais foram os acontecimentos mais marcantes?

Talvez as exposições em São Francisco e em Macau, por razões distintas. Perceber como se trabalha de uma maneira completamente diferente fez-me repensar o meu método. Transformar a escultura de dureza em leveza foi uma das grandes transformações que estas experiências internacionais me trouxeram. Recordo os chineses a dançarem nos jardins ao ponto de contrariarem a gravidade através do domínio da mente sobre o corpo. Eles conseguiam levitar por cima de pedras que picavam e isso impressionou-me. Como é possível chegar a um ponto de transformação de nós próprios e, creio mesmo, que só não conseguimos porque não queremos.

E São Francisco?

Foi desafiante pela distância e logística. Preocupava-me como iria levar trabalhos tão grandes para tão longe, o desafio da montagem, qual seria a adesão do público e depois acabou por ser das exposições mais fáceis e melhor organizadas. Tudo aquilo que eu pensei que seria difícil transformou-se em fácil. Nós criamos as nossas próprias barreiras e há que ter estas experiências para percebermos que há que andar para a frente.

Considera que o artista é uma “persona” ou trata-se de um prolongamento do eu?

Penso que o artista é um prolongamento do nosso eu. Talvez seja uma persona enquanto existem barreiras que não se conseguem ultrapassar, e aí há uma justaposição entre as duas “entidades”. Tudo se pode transformar nas nossas mãos. Basta sabermos olhar, ver, observar e interiorizar para depois podermos transformar o que queremos. A base da criação de algo é um ciclo de autoconhecimento. Uma exposição é sempre algo novo e fico sempre inquieta com o “desconhecido”, mas depois quando passa sinto-me tranquila e realizada porque se fez e a mensagem foi passada. Todas as minhas exposições têm sempre uma transmissão de valores e de uma nova perspetiva. Sou católica praticante e essa é a base: a criação que nos foi dada e que temos de proteger e dar continuidade. Pensar que não estamos cá só para nós, mas sim para os outros.

Como acredita que se gera a criatividade?

Não é sentada a olhar para o céu que a criatividade nasce. Também pode ajudar no processo, mas penso que é sobretudo fruto de muito trabalho. Procurar ir a exposições, escutar concertos, ver bailados, isto para nos “enchermos “e depois podermos enriquecer a nossa capacidade de criar. Este mundo infinito de possibilidades tem de ser alimentado e trabalhado. Se deixar de desenhar, custa-me a sair o risco. No meu caso, o meu lápis é a minha rebarbadora. Se tiver um mês sem trabalhar os meus músculos já não acompanham a máquina com a leveza que deveriam. Ao esculpir uma peça, tenho de calcular pesos, dimensões, equilíbrios. É um trabalho interdisciplinar que requer uma aprendizagem constante.

Considera que a arte tem uma componente terapêutica?

Sim, sem dúvida. Costumo trabalhar com a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Marvão e a criatividade daquelas pessoas extraordinárias emociona-me. É tão bonito aquilo que nos dão… porque não têm medo de se mostrar e fazem-no com uma liberdade interior incrível. A arte pode ajudar qualquer um de nós a todos os níveis porque ela é transformadora. Tenho duas esculturas táteis, a Torre de Belém e a Vila de Marvão, feitas para pessoas cegas poderem tatear e perceberem o que está ali.

Qual é a material mais desafiador para trabalhar?

Eu trabalho a pedra, o ferro e o bronze que são materiais completamente distintos. À pedra vou retirando, tem de nascer aquilo que já lá está. O ferro e o bronze funcionam ao contrário, acrescento, e na resistência também têm comportamentos diferentes.

O que a realiza mais no seu trabalho: o processo de esculpir ou ver a peça acabada?

Quando se olha para as minhas peças vemos partes completamente lisas, outras que estão como a peça nasceu e a outra parte está como a começo a cortar. Deixo sempre riscos da própria máquina que contam a história da obra. No processo de criação não consigo determinar quanto tempo levo aqui ou ali. A inspiração, o tema e a conceção é talvez a fase mais demorada. Depois de ter construído a peça na minha cabeça, normalmente, faço sempre uma maquete e a seguir começo a esculpi-la no próprio material. E aí, costumo dizer, que sou muito bruta a trabalhar porque enquanto não tenho a peça pronta não descanso. A peça nasce, passa por várias fases e vai crescendo até se descolar do criador.

Até ao momento em que a considera pronta…

Quando sinto que ela já não é minha e está cá fora para a dar aos outros, entro numa sensação de libertação extraordinária. E digo “agora tens o teu caminho a percorrer já não és minha”, um pouco como se de um filho se tratasse quando atinge a maioridade.

Maria Leal da Costa nasceu em Évora em 1964. Fez o curso de interiores da Escola António Arroio e entre 1982 e 1986 frequentou o curso de escultura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Expõe os seus trabalhos desde 1994. Tem atelier na Quinta do Barrieiro, em Marvão, onde vive e trabalha desde 1999.

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