Apontamentos do divino surgem, tenhamos a luz para os vermos ou, ao menos, a vontade que começou com D. Teotónio de Bragança, em 1583, a manifestar junto do Papa Gregório XIII a sua profunda devoção pela Ordem da Cartuxa e o desejo de a trazer para Portugal, conseguida após intervenções profundas no edificado, levadas a cabo pelo arquiteto Giovanni Vincenzo Casale.
Em 1598 o Mosteiro de Santa Maria Scala Coeli, palavras latinas que significam “escada para o céu”, recebia sete monges da Ordem Cartuxa. Os cartuchos ali viveriam 236 anos até serem expulsos em 1834, na sequência da Revolução Liberal que empurrou o edifício para a posse do Estado.
Só em 1940, o bisneto do proprietário, José Maria Eugénio de Almeida, que aqui instalou a sede da Casa Agrícola Eugénio de Almeida em 1871, devolveu o mosteiro ao seu propósito original, criando as condições habitacionais para o convento receber de novo sete monges da Ordem dos Cartuxos, uma ordem de clausura, de orientação puramente contemplativa, surgida no século XI na zona de Grenoble, no sopé dos Alpes franceses.
Aqui, às portas de Évora, oraram e trabalharam de 1960 a 2019 deixando um testemunho de humanidade e serviço a cada pessoa que lhes bateu à porta na sua circunstância “de procura” específica. Nesse ano, 2019, os últimos quatro monges, todos com mais de 80 anos, partiram rumo a Barcelona. “Quero contar-vos que esta despedida de hoje, 31 de outubro de 2019, devia e podia ter sido feita há 30 anos. Em 1989, a Ordem Cartusiana decidiu fechar Scala Coeli, como fechou outras”, disse na altura o padre Antão López, prior do Mosteiro da Cartuxa de Évora.
Em 2022 as portas da clausura abriram-se novamente, desta vez para receberem as Irmãs do Instituto das Servidoras do Senhor e da Virgem Matará, congregação fundada na Argentina em 1988, o ramo feminino da Ordem Religiosa do Verbo Encarnado, que data de 1983.
Madre Maria Iuxta Crucem, a atual prioresa do Mosteiro da Cartuxa, é de origem holandesa e licenciada em teologia. Recebe-nos numa sala ampla e espartana de teto abobadado, onde ecoa o silêncio, por trás de uma grade trabalhada em madeira. É a separação entre o sagrado e o profano que aqui se materializa.
Responderam ao pedido do Arcebispo de Évora, Dom Francisco José Senra Coelho, que pediu à superiora geral da Congregação para ocuparem o espaço que ficou vazio após a saída dos monges. “Infelizmente, no mundo há muitos mosteiros que não estão habitados e não os podemos ocupar todos”, diz Madre Iuxta Crucem, acrescentando que após várias visitas ao espaço o pedido acabou por ser aceite.
Depois foi preciso encontrar as monjas para virem viver para Évora e começaram mais uma vez pelo número sete, “o número divino”, que habitavam em dois mosteiros em Itália. “Podemos propor à nossa superiora geral irmos para um lugar específico, se temos esse desejo, ou então esperamos tranquilamente a sua sugestão. Como fazemos o voto de obediência, se somos enviadas para um lugar não vamos recusar”.
“Somos missionárias”, lembra prioresa, “uma comunidade contemplativa que faz parte de uma congregação de missão e, por isso, podemos ser destacadas em qualquer altura. Entrámos sete irmãs e, do grupo inicial, restam apenas três porque as outras quatro já mudaram de lugar. Atualmente somos oito e, por enquanto, não há vocações portuguesas embora tenhamos um núcleo em Almada de irmãs apostólicas que está a fazer um trabalho importante na área das vocações”.
Acresce que existe uma portuguesa, nascida na Suíça, no noviciado, que se encontra a fazer a formação dada pela Congregação num mosteiro em Itália. A ordem conta com 1600 religiosas das mais diversas formações académicas, desde a arquitetura à biologia, que respondem ao “chamamento” de Deus
“Respondemos a uma vocação de Deus. Temos irmãs que vêm de ambientes católicos e outras que cresceram em ambientes ateus e que depois tiveram a sua própria conversão. Deus dá a liberdade de respondermos à sua chamada e, é de facto um mistério, quem escolhe, onde e quando”, diz a irmã Maria Iuxta Crucem, que passou da vida apostólica à contemplativa, uma vida dirigida à oração. “A nossa finalidade é rezar, nós estamos cá para nos sacrificarmos, como todos os cristãos. Isso significa que nós estamos nesta clausura justamente para poder rezar pelo mundo”, acrescenta.
Cada instituto tem uma intenção particular e a deste mosteiro é rezar pelos cristãos perseguidos e para que cada cristão tenha um espírito de mártir no sentido de dar a vida pela fé, um pedido do arcebispo de Évora. Fazem-no com uma separação física do mundo e em recolhimento, para poderem rezar melhor pela paz na Terra.
“Para as pessoas que não têm fé a nossa vida é muito difícil de entender porque não conseguem perceber o verdadeiro valor da oração. Quando chegámos a Évora encontrámos muitas pessoas que mostraram estar contentes por continuarmos a vida contemplativa o que quer dizer que compreendem o valor da oração”, partilha a irmã, referindo que isto foi algo que lhe chamou a atenção quando aqui chegou há três anos.
O silêncio impera na vida diária da Cartuxa e é interessante ver na Bíblia a forma como Deus atua. “Por exemplo, quando Deus se fez homem, no ato da encarnação, foi num momento de silêncio. Quando o anjo anunciou à Virgem Maria que ela iria ser mãe estava tudo muito tranquilo. A criação também foi algo muito silencioso, sem orquestra, sem barulho e Deus faz assim. Quando Elias vai ao monte Carmelo, para orar a Deus, passa por muito barulho, por muitas tormentas e depois vem um vento muito suave… e lá está Deus”, conta a responsável pelo mosteiro remetendo para passagens da Bíblia a importância do silêncio interior para melhor se escutar a voz divina, uma reunião que ali é contínua.
“O trabalho também é uma forma de nos unirmos a Deus. Esta união é mais fácil de fazer em silêncio. Há pessoas lá fora que têm a sua família e, evidentemente, também podem fazer esta união a Deus, mas nós temos mais facilidade. Não temos distrações e aqui na Cartuxa o silêncio é muito forte, estamos perto da cidade, até podemos ouvir um carro lá bem ao fundo, mas, em geral, o ambiente é de silêncio e isso ajuda-nos a ouvir a voz de Deus e a reunirmo-nos com Ele”, sublinha.
No centro da vida contemplativa das irmãs está Jesus Cristo na cruz. E, dizem, tudo começa na encarnação que é o caminho “difícil” que Deus, através de Jesus Cristo, “nos mostrou”, num total despojamento de si próprio.
“Na encarnação e, em todo o caminho até à cruz, Jesus propõe dar a vida pelos amigos através desta entrega total, que consistiu em todo o sofrimento que passou, não só no calvário, mas também nos três anos de vida pública. Todo o ser humano terá de passar por sofrimento na vida, todos temos a nossa cruz e fazê-lo com Cristo, no sentido de nos despojarmos do nosso ego, unir o sofrimento a Jesus com essa intenção é uma graça enorme”, refere a prioresa, que se sente motivada para acolher pessoas que procurem ajuda espiritual.
“Ainda não temos essa valência a funcionar porque há que preparar o espaço, mas, a longo prazo, esse é um projeto que vamos pôr em prática cumprindo o pedido do Arcebispo de Évora. Encontrámos várias cartas na caixa de correio, enviadas por pessoas que gostariam de estar connosco e já aconteceu recebermos um grupo da catequese e mostrar-lhes um pouco desta vida contemplativa para que possam compreender a importância da oração”, acrescenta.
Os estudos e os trabalhos domésticos são parte da vida diária das irmãs, que dizem não sofrer de stress pois “já sabem” qual o caminho a percorrer. A imprevisibilidade da vida está nas dúvidas que a morte suscita e este é para elas o momento de excelência.
“A nossa morte”, refere, “é o momento mais importante da nossa vida e hoje pensamos que tudo o que vem antes é que é determinante. Neste momento terreno posso escolher encontrar-me com Deus. Existe uma tendência para querermos satisfazer todos os desejos no imediato e, na maior parte das vezes, é isso que nos move”.
Quando estava na vida apostólica, Maria Iuxta Crucem diz que fazia um exercício com os grupos de jovens perguntando o que queriam fazer com a sua vida. “As respostas eram: quero estudar, e depois, vou ser médico e depois, ganhar muito dinheiro, e depois, constituir família, ter filhos e depois… e havia sempre alguém, mais alerta, que dizia e depois… vais morrer. Claro que estes desejos são todos ótimos, sem dúvida, mas temos de pensar mais além e escolhermos se queremos unir-nos a Deus nesta vida”, afirma a irmã, que acredita que ter “fé firme” em Deus soluciona grande parte dos problemas de stress, ansiedade e angústia que atingem a nossa sociedade.
“O ser humano”, acredita, “tem sede de sagrado dada a sua natureza. Se não acreditar em Deus vai acreditar em outra coisa, na vida material, no seu próprio ego, e isso nunca vai funcionar por- que somos todos limitados no Ser e no Tempo. Dizia o apóstolo São Paulo que se temos esperança apenas na vida terrena, seremos o mais miserável possível”.
Nota da redatora: agradecimento especial às sete companheiras, ao guia do Caminho de Santiago, Marcos Moreira, e à irmã Iranzu (Santuário de las Apariciones de Pontevedra).