Natureza e inovação: Abela acolhe a primeira aldeia regenerativa da Europa

Em Abela, concelho de Santiago do Cacém, empreendedores do sector da tecnologia estão a construir a primeira aldeia regenerativa da Europa, que combina natureza, arquitetura e inovação. O conceito aposta na sustentabilidade, mas também na reparação e otimização dos ecossistemas locais. Júlia Serrão (texto)

Na pequena aldeia de Abela, no concelho de Santiago do Cacém, está a crescer uma aldeia tecnológica assente em modelos inovadores de habitação, propriedade e sustentabilidade, que prevê a “criação de vínculos” entre as pessoas, a natureza e as gerações futuras. O projeto de residência e turismo regenerativo, que dá pelo nome Traditional Dream Factory (TDF), deverá estar concluído em 2026 para uma comunidade permanente de 300 residentes.

Trata-se de desafiar os conceitos tradicionais de propriedade, com o terreno a pertencer a uma associação sem fins lucrativos – do tipo land trust, ou seja, uma espécie de fundo de investimento para propriedades rurais – que trabalha para conservar terras com vista à agricultura ou à proteção de habitats naturais. Os cidadãos têm direito de utilizar as instalações e o dever de cuidar da terra.

“Estamos a construir uma aldeia regenerativa. Um espaço onde o coliving [conceito de mo- radia partilhada], práticas agrícolas regenerativas, tecnologias descentralizadas e expressão cultural se entrelaçam”, diz Samuel Delesque, empreendedor tecnológico e cofundador da Traditional Dream Factory, sublinhando a aposta em “princípios” da agrofloresta [método agrícola que combina árvores, arbustos, culturas e animais num mesmo es- paço produtivo] e da arquitetura bioclimática, que procura tirar o máximo partido das condições naturais do local — clima, topografia, luz solar, ventilação, humidade — para criar edifícios confortáveis, eficientes e sustentáveis.

“Estamos também a organizar eventos, receber voluntários, a desenhar novas formas de habitação e a construir uma comunidade resiliente que cuida do território”, sublinha Samuel Desleques, acrescentando que, com o empreendimento, a associação pretende mostrar que “é possível viver de forma regenerativa, colaborativa e inspiradora, cuidando da terra, das relações humanas e das estruturas que nos sustem”. A ideia é “criar um modelo vivo de como se pode habitar o planeta de forma equilibrada, regenerando o solo e os laços sociais”, modelo esse que diz poder ser adaptado por outras comunidades às suas próprias realidades.

O projeto começou com um grupo de mais de 60 nómadas digitais, que continua a crescer, e inclui admiradores da web 3, rede em que os próprios utilizadores detêm o controlo dos seus dados, identidades e transações, engenheiros, especialistas em permacultura, arquitetos e criativos.

A maioria é proveniente da Alemanha, Suíça e França, sendo que muitos têm ligações a Portugal. Além de Samuel Delesque, nascido na Dinamarca, a aldeia é “dirigida” por mais 11 elementos, distribuídos por quatro áreas: cuidar da terra (agroflorestação, reflorestação, horta e exploração de cogumelos), construção (carpintaria e bioconstrução), acolhimento e criação de conteúdos.

Esta, garante, será a primeira aldeia regenerativa da Europa, sendo que a escolha se ficou a dever ao facto do lugar, Abela, “oferecer algo raro”. Ou seja, “vastas paisagens, abundância solar, proximidade ao mar, uma ligação histórica com a terra” e a proximidade com Lisboa.

A que acresce o facto de o território se encontrar inserido “numa região em risco de desertificação”, o que “oferece uma oportunidade única de restaurar ecossistemas degradados, regenerar o solo, e aprofundar o conhecimento sobre retenção de água em paisagens secas”. Samuel Desleques resume: “Trata-se de um lugar onde sentimos que podemos contribuir com impacto real: ecoló- gico, social e cultural”.

Rodeada de sobreiros que enquadram a vasta planície alentejana a perder de vista, a Traditional Dream Factory transformou um antigo e abandonado centro de criação de aves numa unidade de residências partilhadas e de coworking, com partilha de espaço e recursos para trabalho. De momento, há áreas para caravanas, alojamento glamping, um café, uma sauna e um espaço para eventos com 140 metros quadrados.

Entretanto, a equipa já plantou mais de quatro mil árvores e construiu áreas de retenção de água, estando, no momento, a desenvolver uma horta, pomares, uma quinta de cogumelos e lagos para retenção de água, numa área que é particularmente seca.

ECONOMIA PRÓPRIA

A comunidade local, assegura Samuel Desleques, reagiu “muito bem” à presença do grupo e ao seu modo de vida. “Fomos recebidos de braços abertos”, assegura. Para adiantar: “Algumas pessoas olham com natural curiosidade ou cautela, mas sempre com respeito. Desde o início sentimos acolhimento genuíno. O antigo aviário que estamos a converter servia para as festas da vila, e nós quisemos continuar essa tradição, pelo que já organizámos noites de cinema ao ar livre e eventos culturais com a banda local, chamada Somos do Alentejo. E o Zé, que trabalhava no aviário, continua a vir todas as semanas. Estamos a cultivar laços com quem cá esteve sempre, com escuta e abertura”.

E depois, prossegue, haverá a criação de novas oportunidades de trabalho e colaboração com empreiteiros, técnicos e produtores locais. “Trazemos visibilidade à região, dinamismo económico e uma abordagem ecológica que valoriza a paisagem. No futuro, acreditamos que ao atrair uma comunidade internacional de empreendedores e criadores, podemos criar oportunidades novas para os jovens de Abela — com acesso a formação em agricultura regenerativa, tecnologias digitais, impressão 3D e muito mais. Queremos que este lugar seja também um espaço de aprendizagem e troca intergeracional”.

De um ponto de vista formal, a Traditional Dream Factory está estruturada como uma Organização Autónoma Descentralizada (DAO, no acrónimo em inglês). Ou seja, assenta num modelo de administração em que as decisões são tomadas em conjunto, de forma coletiva, em vez de responderem a uma autoridade central. O que, dizem, reflete os valores elementares do projeto: inclusão, transparência, capacitação e gestão ambiental.

O projeto tem o seu próprio token [espécie de criptomoeda] de utilidade, o $TDF, que funciona como um género de pagamento digital. “Cada token $TDF garante acesso à aldeia um dia por ano”, de acordo com o regulamento. “Trata-se de um mecanismo simples, mas poderoso, para criar um compromisso a longo prazo e uma responsabilidade partilhada”, esclarece um colaborador do projeto.

A aldeia de Abela é a primeira iniciativa da OASA Network, a tal associação sem fins lucrativos de que falámos no início deste texto, e que pretende erguer uma rede global de comunidades de coabitação regenerativa e proteção da natureza, através da gestão coletiva da terra e de uma administração descentralizada.

“Não somos donos da terra, pertencemos-lhe. O nosso trabalho é deixá-la mais viva do que a encontrámos”, resume Samuel Desleques, pioneiro e empreendedor, com mais de uma década de experiência, e que acredita na fusão da tecnologia e da inovação para a construção de um mundo melhor.

Segundo os promotores, pela aldeia regenerativa de Abela já passaram mais de três mil pessoas, entre hóspedes e visitantes. Os planos de expansão incluem a construção de 14 suites privadas, 23 casas de madeira, quatro estúdios para artistas residentes, uma piscina biológica e um restaurante. Até 2026, a aldeia prevê tornar-se uma comunidade permanente para 300 residentes, contribuindo assim para o repovoamento e revitalização económica da região. Esperam angariar mais de 800 mil euros para financiar esta nova fase de desenvolvimento, numa nova ronda de investimento.

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