Gastronomia e vinhos. Na taberna do Larga-a-Velha, por entre copos e petiscos

Num roteiro pelas tascas de Borba é obrigatória a paragem no Larga-a-Velha, tanto para “Fazer as 11” como para o “vinho do trabalho”. Luís Godinho (texto) e Gonçalo Figueiredo (fotografia)

À direita de quem entra no Larga-a-Velha, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima e uma fotografia da fadista Amália Rodrigues estão colocadas de frente para o balcão, como que vigiando quem entra, num espaço que continua a ser maioritariamente masculino.

É ali que me cruzo com ‘O Habitante’, copo de três sobre a mesa. “Chamam-me ‘O Habitante’ pois, quando era novo, fiquei muito impressionado com a chegada do homem à Lua e comecei a fazer foguetões de madeira… como aquilo era para habitar na Lua, lá ficou a alcunha”. Eis Humberto Quina, voz do fado na cidade de Borba. 

Nesta segunda-feira, final do dia, não está virado para fadistices. Mas quem procurar pela página de internet da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria e o ouvir cantar, à capela, o “Fado do Embuçado”, ficará a saber do que se fala quando se fala do Quina. Bem disposto, lá conta que em matéria de alcunhas, ou anexins como por aqui se diz, cada um carrega o seu. 

Do lado de trás do balcão está ‘O Chocolate’, por esta hora sem mãos a medir para aviar copos de tinto. “Sou ‘O Chocolate’ pois era doce quando era novo”. Eis José António Poeiras, 63 anos, desde há sete taberneiro do Larga-a-Velha, nome curioso cuja origem adiante se explicará.

Não foi por aqui que José António se iniciou nestas lides. Antes passou por diversas casas do género, como a Taberna do Cachatra, já encerrada, até que a oportunidade surgiu quando Fernando Proença, o homem que “fez esta casa”, achou que era altura de parar, muito por força do peso da idade.

Conheci Fernando Proença na primeira vez que entrei no Larga-a-Velha, em outubro de 1995, quando trabalhava para o jornal “Público”. Voltei passados 14 anos. “Vá um copinho que este já é do meu”, disparou o homem. “Ninguém ligava a este negócio, foram destruindo as talhas e, hoje, as de 50 almudes [pouco mais de mil litros] como esta não se encontram em lado nenhum”. Era novembro e provava-se o vinho novo, fermentado nas enormes talhas de barro que ainda se encontram na taberna, mas agora apenas como elemento decorativo. “Não sei fazer vinho de talha, dá muito trabalho e a verdade é que não aprendi. Depois, as Finanças também querem muito dinheiro, dantes não havia nada disso”, dispara José António Poeiras, explicando assim a quebra de uma tradição do Larga-a-Velha, como aliás de muitas outras tabernas de Borba, a do fabrico de vinho de talha.

Não sendo ali feito, todo o vinho servido a copo é produzido em Borba. “Nem podia ser de outra maneira, estamos habituados a este”. Os outros “rituais” mantêm-se como sempre foram, desde que há 50 anos Fernando Proença passou a comandar os destinos da tasca: vinho servido em jarros de vidro ou diretamente nos pequenos copos, enchidos uns atrás dos outros, e acompanhados por um petisco.

O preço do copo de vinho, branco ou tinto, já não é de 20 cêntimos, como em 2009, mas pouco subiu: custa 30 cêntimos. Pouco é como quem diz. “Isso quase deu origem a uma guerra, com os clientes a resmungarem com a subida de preço”, brinca o presidente da Junta de Freguesia de Matriz, Leonel Infante, nosso parceiro de jornada, e que daqui a pouco se há de juntar à conversa.

Aos copos, já se disse, juntam-se petiscos. Enquanto José António Poeiras trata do balcão e de quem a ele se encosta, a mulher, Marília, pontifica na cozinha. Desta vez há choco e carapaus fritos, também pão e presunto. Para o dia seguinte estava programada uma omeleta de espargos e costeletas de borrego panadas, tipicamente alentejanas. Cada dia é um dia e, às vezes, há grupos que chegam de fora e pedem um prato específico: “Já aí sentei umas 37 pessoas num banco corrido”. À mesa “podem ir pezinhos de coentrada, ou uma açorda… tenho ali aquele mogango para fritar. Era para ter sido hoje, mas não calhou”, diz o taberneiro, apontando para um enorme mogango colocado em cima de uma prateleira. “Há sempre qualquer coisa para que ninguém fique com fome”, acrescenta.

ANEXINS QUE SÃO HERANÇA

A propósito de anexins, é sabido que muitas vezes passam de pais para filhos e de filhos para netos, permanecendo por gerações. Eis Marcolino Proença, o mais novo “Larga-a-Velha”, alcunha que herdou do pai, Fernando, e que este havia herdado do avô. É Marcolino quem conta: “Dizem que o avô do meu pai era um velhote muito porreiro e velhaco, um verdadeiro mariola, que um dia estava com os amigos quando por eles passou uma senhora viúva, mais velha. Ora, ele meteu conversa, ela terá facilitado a coisa e acabaram agarrados aos beijos até que do outro lado da rua alguém lhe gritou para largar a velha”. “Larga-a-Velha” ficou o homem a ser conhecido. Depois o neto. E assim foi batizada a tasca, ao número 21 da Rua Dr.º Ramos de Abreu.

“O meu pai”, conta Marcolino Proença, “trabalhava nos mármores, pois era o que havia naquela época, mas aquilo era muito duro. Um dia zangou-se e decidiu arranjar um comércio”. Calhou que esta casa, propriedade de uma tia, estava fechada, e o homem tratou de reabrir a porta. “Não tinha talhas nem nada disso, apenas o balcão e pouco mais. Mas o meu pai era um homem que se mexia bem, pois vendia aqui vinho, vendia fruta no número 27 e fazia mercados na praça. Sempre foi um homem dos sete ofícios, um homem de luta que conseguiu comprar todo este edifício”.

De luta e de música, já que não era raro puxar por um velho acordeão para animar a clientela. “Foi para o lar, mas ainda gosta de beber o seu copinho. Fará 88 anos ao dia 1 de janeiro”. Filho único, foi aqui que Marcolino cresceu e se fez homem, com o pai à frente da tasca e a mãe,

Umbelina Pombeiro, a tratar da cozinha. Continua a ser visita frequente, quase diária. “É uma casa que faz parte da história de Borba, não irá acabar, nunca irá acabar”, garante.

Na cidade, há duas tradições na cidade associadas ao vinho e ao petisco. A primeira dá pelo nome de “Fazer as 11” e, por norma, começa no Alto da Praça quando, por volta das 11h00, ou um pouco mais tarde, se começam a juntar pequenos grupos de homens que dali partem num circuito que os conduzirá pelas tascas mais tradicionais. O petisco é ligeiro, um pedaço de frango frito ou um pouco de pão com toucinho, apenas o suficiente para “tapar” o vinho, que o almoço já não vem tarde.

A outra tradição é em tudo parecida, com grupos de taberna em taberna, mas realiza-se ao final do dia e marca a continuidade de uma herança cultural ancestral, comum em muitos pontos do Alentejo: o “vinho do trabalho”. Conta Leonel Infante, o presidente da Junta de Freguesia da Matriz, que depois de um dia de trabalho duro nas pedreiras de mármore era hábito os homens encontrarem-se para beber um copo e conviver. 

A dureza do trabalho já não é a mesma, mas o hábito ganhou raízes. “É daquelas tradições que dá gosto ver e a que as pessoas mais novas não viram as costas, juntando-se para dar a volta pelas tascas. Nestes tempos do digital, aqui em Borba ainda há o hábito de falarmos cara a cara e de confraternizarmos à volta de um copo e de um petisco”, conclui o autarca.

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