Se o jogo de cartas for de proveniência aristocrática, a dama valerá mais… se o jogo for de proveniência popular será o valete mais valioso…
Sol, sardinhas, toalhas estendidas, crianças molhadas e adultos à sombra com um baralho de cartas na mão. O verão português é, entre muitas coisas, um tempo de jogo: jogam-se suecas em mesas de jardim, buracos em cafés de aldeia, paciências silenciosas em varandas com vista para o mar. E é nestes jogos de cartas — tão simples quanto carregados de história — que por vezes se escondem códigos sociais mais antigos do que imaginamos.
Uma das curiosidades que passa despercebida à maioria dos jogadores ocasionais é a seguinte: nos jogos em que a dama (ou rainha) vale mais do que o valete (ou pajem), estamos normalmente perante jogos de matriz aristocrática ou burguesa. Pelo contrário, quando o valete assume maior valor do que a dama, é mais provável que estejamos diante de um jogo de tradição popular, moldado no improviso das tabernas e das casas modestas. Não é uma regra absoluta, mas há neste padrão algo de profundamente simbólico.
A origem dos baralhos de cartas na Europa remonta ao século XIV, provavelmente trazidos por mercadores muçulmanos através da Península Ibérica. Os primeiros baralhos usavam naipes diferentes dos atuais — taças, moedas, espadas e bastões — e variavam conforme a região. Mas foi o baralho francês, já no século XV, que impôs os quatro naipes modernos (copas, ouros, paus e espadas) e as três figuras: rei, dama e valete. Esta estrutura imitava a ordem social: o rei no topo, a sua consorte abaixo, e o valete, um criado de armas ou escudeiro, na base da escala nobre. Nos jogos mais refinados — o whist, o bridge e o nosso contemporâneo king — esta ordem mantém-se inalterada, como reflexo das boas maneiras, da estrutura de corte e da reverência cerimonial.
Mas nem tudo é disciplina. A Revolução Francesa, que quis derrubar tronos e abolir privilégios, não se esqueceu das cartas. Num gesto politicamente simbólico, os revolucionários tentaram suprimir do baralho as figuras reais — o rei, a dama e o valete — substituindo-as pelos ideais da nova ordem: liberdade, igualdade e fraternidade. Foi, em rigor, uma das primeiras tentativas políticas de “cancelamento” cultural. Mas não funcionou. O povo continuou a jogar com reis e rainhas, às escondidas ou com baralhos antigos. O novo baralho republicano nunca ganhou o coração dos jogadores, e o antigo regime, pelo menos nas cartas, sobreviveu à guilhotina.
Já nos jogos populares, criados e recriados à margem das cortes, o Valete começou a ganhar importância. Por vezes por conveniência do jogo, por outras como afirmação lúdica de que a esperteza vale mais do que a linhagem. É o caso da nossa sueca, onde o valete de paus — o temido “Zé-Pequeno” — se sobrepõe a qualquer dama. Ou do truco sul-americano, nascido nos bairros e nas praças, onde o valete serve para blefes e truques malandros. Em certos jogos do Norte de Portugal, chamava-se “dama velha” à dama de paus, carta tida como fraca, ultrapassável por qualquer figura mais vivaça. A dama, símbolo do protocolo, perde assim para o valete, símbolo da astúcia.
Dois jogos em particular ajudaram a eternizar essas dinâmicas simbólicas: a canastra e o bridge. A primeira, de origem sul-americana, chegou a Portugal nas décadas de 50 e 60 e encontrou terreno fértil nos navios da Marinha portuguesa. Era fácil de aprender, ocupava o tempo morto das longas travessias e fomentava companheirismo e estratégia. Em muitos navios da Armada, oficiais e sargentos passavam horas a fio em torneios informais de canastra, com folhas de pontuação coladas nos camarotes. Ainda hoje, em clubes náuticos e lares de antigos combatentes, há quem jogue canastra como quem recita uma oração antiga — com o ritmo de quem já viu mar alto e sabe o valor de um par bem jogado.
Já o bridge, nascido das evoluções do whist, foi desde cedo o jogo predileto da elite militar e diplomática britânica. Entre os oficiais da Royal Navy, tornou-se quase uma disciplina auxiliar: jogado a bordo de cruzadores, em salões de estado, em estações coloniais ou clubes de oficiais espalhados pelo império. Não era apenas passatempo — era treino mental, etiqueta, contenção emocional e arte estratégica. No auge da presença britânica no Mediterrâneo e no Índico, havia capitães que preferiam perder uma batalha do que uma partida de bridge. Na Marinha portuguesa, embora menos difundido, o bridge também foi praticado em certos círculos mais formais, com particular incidência entre oficiais do Estado-Maior e diplomatas navais.
Menos conhecida é a razão matemática por trás da estrutura do baralho francês: 52 cartas para as 52 semanas do ano, quatro naipes para as quatro estações, 13 cartas por naipe como as 13 luas cheias anuais. E até nas figuras há ecos clássicos: a dama de espadas representava Palas Atena, deusa grega da sabedoria; o valete de ouros, Hector, herói de Tróia. Nada disto é acaso. As cartas são também, no seu silêncio colorido, um compêndio de mitologias disfarçadas de lazer.
Há quem pense que as cartas são apenas um passatempo de verão, mas isso é uma meia verdade. Os jogos transportam história, transmitem valores, guardam ecos de épocas em que o rei não era apenas uma figura de papel. Quando, neste Verão, embaralhar um baralho e distribuir cartas com amigos ou familiares, repare bem: a dama está acima do valete? Ou será que, ali à mesa da esplanada, o valete já ganhou o trono por astúcia?
Pode parecer só um jogo — mas há muito mais escondido entre as cartas.