Nuno Mourinha: “Um café e dois bagaços”

A opinião de Nuno Mourinha, arqueólogo e diretor do "Brados do Alentejo"

No café, lá está ele: o sábio de balcão. Um tipo que, entre uma imperial e outra, discorre sobre a atualidade com a confiança de um professor catedrático. É fácil reconhecê-lo. Normalmente de pé, ar convicto, expõe a sua visão sobre o mundo, certo de que sabe o que diz. Dêem-lhe um mapa e ele aponta, sem pestanejar, o Kremlin, a Casa Branca, as Maldivas e as Malvinas. Os “amaricanos” podem tentar enganá-lo, mas ele está sempre um passo à frente, ou pelo menos gosta de pensar que sim.

No entanto, algo o desconcertou. Como é que alguém, mestre em polémicas e provocação, consegue tantos votos, até entre os mais prejudicados pelas suas políticas? Como é que um misógino atrai votos femininos? Um racista, apoios entre latinos? E um ultraliberal, o voto dos trabalhadores? Reflete sobre estas perguntas, enquanto pede dois bagaços para ajudar a digestão.

Mas há algo que parece claro: a economia. Trump soube explorar a sensação geral de que a economia americana está em baixo – o que, na verdade, não corresponde aos dados, mas ecoa na memória fustigada pela inflação. Recordam-se? Há dois anos, os pobres e a classe média foram, como sempre, chamados a pagar a crise. E assim foi. E os lucros dos bancos? Esses vão de vento em popa, graças a Deus. Ninguém esqueceu; foram tempos duros.

A campanha democrata, contudo, ignorou este “pequeno” detalhe: aquilo que realmente interessa ao bolso das pessoas. O dia-a-dia, o dinheiro que sobra para as compras, o sonho americano dos pequenitos. O peru no Dia de Ação de Graças, as abóboras no Dia das Bruxas. Perderam-se em conceitos abstratos, nos discursos académicos, e acabaram por afastar o eleitorado popular.

Para quem se sente defraudado, “salvar a democracia” soa mais a retórica do que a realidade. Ao focarem-se em identidades de género e etnia, esqueceram-se da identidade que os unia a todos: a classe social. Trump não cometeu esse erro. E foi isso que fez com que trabalhadoras, negros e latinos se unissem em torno de algo muito concreto: a carteira. Sim, anseiam por direitos para o seu género ou etnia, mas antes de mais, querem dinheiro no bolso. Trump e Vance responderam, mentindo, mas convencendo.

E agora, como diria um certo primeiro-ministro, “habituem-se”. A direita radical chegou ao palco central, enquanto a esquerda, ao focar-se em identidades, parece ter perdido o contacto com o povo e as preocupações reais do dia-a-dia. Se querem reconquistar esse povo, vai ser preciso mais do que retórica e teorias complexas; será preciso refletir, rever a estratégia e lembrar-se do essencial: falar a língua das pessoas.

Perder o contacto com o povo é perder o contacto com a realidade. Kamala perdeu porque é mulher, porque é negra? São fatores? Claro que sim. Mas depois de tantas derrotas, insistir na mesma explicação começa a soar mal. Começa a ser embaraçoso. A culpa não pode ser sempre só dos outros. O poder, no final, não pertence a quem mais fala, mas a quem melhor sabe ouvir.

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