“O Homem, como as árvores, deve fazer um esforço para dar frutos”

António Homem Cardoso, nome maior da fotografia portuguesa, trocou a agitação da cidade pela quietude do Alentejo. A luz da região, a vastidão da paisagem e o silêncio do interior acabaram por conquistá-lo. Aqui encontrou espaço e tempo para ver e ser. Um retratista retratado. Alexandre de Barahona (texto) e Cabrita Nascimento (fotografia)

António Homem Cardoso trabalha como fotógrafo desde a adolescência, na rua, e fez-se quem hoje é, um gentleman, um cavalheiro na fotografia e per se. Aos 80 anos respira a tranquilidade que lhe nasce no interior, basta trocar meia dúzia de palavras com ele para rapidamente nos apercebermos disso. E cair no seu charme repleto de sabedoria extraída na experiência do quotidiano. À qual se conjuga a genuína humildade, de quem se atirou à vida com determinação, sem espe- rar nada receber em troca. A não ser, talvez, esta paz flegmática com que passeia hoje, por entre nós.

Nascido em 1945, no pós-guerra, tempos difíceis em Portugal e em toda a Europa, como lhe veio essa ideia da fotografia? Foi um daqueles momentos que, sem se percebermos porquê, mudou toda a sua vida. “Recebi em 1959 uma máquina fotográfica, como prenda de um ator norte-americano a rodar um filme em Lisboa”. Confessa António Homem Cardoso, explicando que serviu a mesma para fotografar a equipa de cinema a trabalhar pelas ruas de Lisboa, e por isso, ainda recebeu uma boa remuneração. “Naquela altura, foi uma bela quantia, e em dólares americanos” – e eis como este episódio lhe alterou para sempre o destino.

“Os meus primeiros passos na fotografia, a sério, foi quando descobri que podia continuar a ter esta vida de vadio, ou libertino, quero dizer livre de todas as influências familiares, porque vivi sozinho desde os meus 14 anos”. Trabalhava a tirar fotografias de rua, e começou a vendê-las, o que lhe permitiu obter essa autonomia pessoal e profissional. “Sim, fez-se luz! Disse para comigo mesmo: espera lá! Então eu posso continuar a viver, a comer, a dormir, sem ter emprego, sem ter obriga- ções, sem ter obediências, em suma, sem ter chatices”.

Mais tarde, obrigado a cumprir o serviço militar obrigatório, entre 1966 e 1969, onde além do curso de atirador, também fez um outro, de fotografia e cinema. Sobre esta fase, fez questão em mencionar o seu instrutor, chamado Carlos Cruz. “De quem fiquei amigo toda a vida, e cujos últimos anos, não têm corrido tão bem como ele merecia”.

O cinema, em si, não lhe despertou tanto interesse em termos de fotografia. Participou em alguns documentários com o “seu querido amigo” Augusto Cabrita, contracenou com o grande ator francês Claude Brasseur em “O Fio do Horizonte” (1993), de Fernando Lopes, fez uma ou duas aparições em telenovelas e no Teatro D. Maria II.

Apesar de ter sido convidado várias vezes para ser diretor de fotografia no cinema, recusou, porque “para mim a fotografia é um momento e um fotograma. Se tenho de ser coerente e manter essa coerência num milhão de fotogramas, isso afeta-me emocionalmente. Quero sempre alte- rar a perspetiva, olhar do outro lado”.

Instado sobre o que significa para Homem Cardoso, esse instante fotográfico, responde com um surpreendente e súbito entusiasmo: “É quando há aquela sintonia fantástica entre a expressão dos olhos e dos lábios e onde a cara é um livro extraordinariamente aberto, é um grito de felicidade, desespero, ternura, de saudade ou de outro sentimento qualquer, é isso. Como os fotógrafos sabem, pressiona-se um pouco o botão de disparo para o foco, e fica-se ali em tensão. Até que um anjo se encarregará de dizer ao ouvido – carrega agora até ao fundo. E é aí que o milagre acontece, o milagre do retrato”. A sua voz impregnada de paixão, vislumbra-me o miúdo de 14 anos que ainda pulula na alma do octogenário fotógrafo.

Reconhecido retratista no meio da fotografia portuguesa, António Homem Cardoso afirma-se mais como “leitor de almas, de inter-rogador de espíritos”. O objeto do retrato para si, são os olhos. Quando a fotografia passou a ser digital, fez-lhe alguma confusão, alterou de alguma forma o seu trabalho? “Não”, responde-me redondamente, “não me fez diferença nenhuma. O ato de ver, é o mesmo”.

Diz não ter tido habilitações académicas para grandes ambições, então, que aquilo que o salvou, foi a curiosidade. A procura, a adivinhação das coisas, é o fio condutor do seu percurso. Sobre a fotografia portuguesa, tem um olhar positivo, de opinião que somos um país de belos fotógrafos, salientando desde logo o eborense José Manuel Rodrigues, “um fotógrafo de invenção, de espírito”.

Portugal é abençoado por uma luz mara- vilhosa, e os nossos fotógrafos são de excelente qualidade. Mas poderiam ter maior dimensão internacional. Contudo, diz, é o país que temos. “Tudo em Portugal é pobre. É um país pequeno e pobre. Os autores são mais pobres, os escritores quando vendem cinco mil livros, são classificados com best sellers”.

Na sua opinião, ao longo da história temos fingindo, de vez em quando, fugir disso, mas regressamos sempre a essa realidade de sermos pobres. Pergunto-lhe porque não passamos disso? Responde, serenamente, que não podemos passar. “Os portugueses inventaram tudo antes do tempo. Inventámos a globalização, inventámos a capacidade de estender o território, fizemos tudo o que podíamos, as nossas fronteiras foram até ao esforço de onde os nossos navegadores cavaleiros chegaram”, agora o nosso condicionalismo de estarmos “no fim da Europa, onde a terra acaba e o mar começa, de não sermos um sítio de passagem, prejudicou-nos sempre, no passado e irá prejudicar-nos no futuro”.

Quis saber além do passado, tentando descobrir qual seria a exposição que ainda não fez, e gostaria de realizar? A resposta desarma-me: “Nunca quis fazer nada, em absoluto. Nunca programei a minha vida. Há um poema que Amália canta, que diz – nunca peças demais à vida, aceita o que ela te dá – e eu fico sempre por aí, por instinto”.

Amália Rodrigues a surgir na conversa, vinda do nada. Do nada? Ou talvez não. António Homem Cardoso revela ter tido uma profunda relação com a fadista, e ter nos seus fados descoberto o erotismo, a paixão, e entendido que deveria levar a vida pasmado com o que lhe foi dado a viver: “Apanhei os comboios que pude, uns antes do tempo, outros perdi por estar distraído, mas acho que a vida foi melhor que aquilo que eu merecia”.

A fotografia é mais talento ou mais técnica? “É mais talento” – atira perentório. “A técnica não tem importância, sobretudo agora”. Na sua opinião, os homens deveriam, como “as árvores, fazer um esforço para dar frutos. Dar sombra, por exemplo, ou dar carinho, amor ou outra coisa qualquer. Porém, nós não podemos dar aquilo que não temos”. Di-lo a propósito de quem tem pouco talento para a fotografia, mas insiste nisso.

Recordo-lhe um livro com fotografias suas e texto de Urbano Tavares Rodrigues sobre o Alentejo, que Homem Cardoso aprecia em particular, saudando a fantástica luz que aqui temos. O Alentejo é uma paixão muito antiga e surpreendente, declara: “Vim pela primeira vez, ainda muito jovem e lembro-me que fiquei muito admirado pela liberdade de olhar e ver, sem ser interrompido por muros, vizinhos, capelinhas, para um homem da Beira, esta extensão maravilha-me”.

Aos 20 anos comprou um capote alentejano em Beja, que ainda guarda, e o de- sejo de viver por cá, que só agora realizou, aos quase 80 anos, adquirindo uma casa num sítio tranquilo no Alentejo. Pela sua forma de ver a vida, António Homem Cardoso, pareceu-me ser mais alentejano que muitos nascidos e vivendo no Alentejo. Talvez precisemos de alguns migrantes deste calibre, para nos recordar, aquilo em que os nossos bisavós acreditavam, e pediam à vida.

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