Crónica de Carlos Leitão: “O mais novo do Emídio voltou”

Não é sobre mim, é sobre o indizível que nos une ao berço, ou deveria unir. Não é uma versão Anti-Dantas contra Lisboa, mas antes a telúrica tentação do Alentejo que ainda anda longe da cidade grande. Talvez seja isso que mais me prende. Carlos Leitão (texto)

As botas ortopédicas ainda me emagreciam mais as pernas esterlicadas sentadas no pelourinho onde penduraram os sonhos de tantos.

Dali, eu via o Alentejo inteiro: os autocarros manobrados nas ruas que não foram feitas para si, os velhos guardiões da praça sempre no comando (tal como hoje), as avós de negro e os poucos gaiatos. Só a permissão do Sr. Sereno ou do meu primo João para me sentar ao volante dos seus táxis me deixava conduzir os sonhos. Tudo era tão diferente do meu dia-a-dia. Se ali eu era o menino da cidade que vinha à terra dos seus pais, em Lisboa chamavam-me alentejano, uma espécie de castigo bullie que apenas serviu para me criar calo e certeza, nada mais do que isso.

Só os mais velhos da família me tratavam pelo nome. Na rua, era apenas “o mais novo do Emídio”, um gaiato amorfanhado de olhos despertos que se perdia da realidade por tudo e por nada. O epíteto mantém-se, e mesmo que “Carlos” seja nome fácil de decorar, continuo a ser o filho mais novo do melhor dos homens. Não me chateia, orgulha-me. Todas as lembranças que guardo me firmaram à raiz, e isso, nestes tempos feios que confundem o berço e o futuro, tem sido a centelha de todas as minhas melhores decisões. Vir foi uma delas.

Não me tento ao proselitismo de trazer lisboetas para o Alentejo (talvez nem os queira por cá), nem é coisa que se transmita com parlapié, muito menos quero explicar que uma sopa de tomate não é um creme que leva queijo feta, croutons e manjericão picado, como Lisboa aprendeu a fazer num showcooking estrangeiro. Saber-se que uma sopa de tomate leva um ovo escalfado, toucinho e linguiça, fritos, é ancestral sabedoria e deveria vir incluída nos programas escolares. Uma açorda não é uma “sopa alentejana”; come-se com bacalhau, e figos, e melão, e uvas, e tudo o que a secular arte do desenrascanço tenha deixado na memória da história. Enfim.

O engenhoso saber geórgico dos mais pobres começa no palato, só assim se prova que beldroegas não são ervas daninhas para alimentar os porcos e que a selvajaria dos catacuzes casa bem com sopa de feijão. A educação das papilas fi-la cedo, sentado às mesas dos velhos petisqueiros: o Luis Ameixa, o Gingão, o “Xico” Estrada, o meu padrinho, o meu pai, todos eles me deram a provar a mais saborosa história do Alentejo.

Lembro-me que era através dela que a camaradagem se alimentava nos brindes cúmplices de quem aprendia a imberbe democracia e de quem me deixava molhar o dedo no vinho tinto para me achar mais homem e temperar com o rival do Sumol, o Fruto Real, os torresmos do rissol, a banha fria alaranjada da carne de porco barrada no pão, os passarinhos fritos carregados de alho, e todas as iguarias que não se provavam em Lisboa. Bons tempos de glúten.

Lisboa deu-me as ferramentas, mas o colo foi sempre a sul, e mesmo que a viagem se faça muitas vezes, na verdade, para oeste, sabe bem a ideia da lonjura que o sul propõe. Não é desdém, é a convicção do tesouro, mapeada em tudo o que faço e quero; é o umami que não se prova às mesas ‘gourmets’ dos encaixotamentos culturais. Por ele, é preciso lutar logo a partir de Vendas Novas.

Agora que finalmente faço morada certa neste encantado sul, não tinha ainda percebido que me lembrava de tanto. Sinto que são os passeios pela vila nas noites de verão, a iminência da morte dos velhos, o abraço dos meus ou o que entretanto tenho aprendido a cozinhar com eles que mais memórias me acordam. E talvez todo esse folheado enciclopédico de recordações e saudades que me chega, por norma, sem pré-aviso seja a forma mais bonita que o tempo anda a encontrar para trazer o velho Emídio para mais perto de mim.

Uma resposta

  1. Carlos, A.D.O.R.E.I.!!! Revejo-me neste teu texto, tão carregado de saudade, ternas ( tão ternas!! ) memórias e tão fiel retrato do que foi e,
    Beijinho! continua a ser o nosso amado Alentejo. Apenas uma diferença…para os amigos que ainda tenho, que conservo desde a infância em Mourão, sou a Rute. Para os mais velhos, fui e continuo ainda a ser, a “neta do Agostinho Gato” 🙂

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