Crónica: “O relógio que apressa e a ampulheta que acalma”

Bruno Horta Soares (texto). Imagem gerada por inteligência artificial

Há tempos que param e há tempos que correm. O primeiro é das ampulhetas: pausado, consciente, permitindo que o tempo se torne visível, mas apenas enquanto alguém decide virá-la. O outro é dos relógios: sempre a marcar o próximo segundo, a próxima meta, a próxima coisa a fazer.

Assim é também a evolução da tecnologia. No início, é sempre a ampulheta — fascinante, opcional, quase mágica. Quem adota primeiro uma tecnologia destaca-se: é o visionário, o curioso, o “diferente”. Mas, com o passar do tempo, a tecnologia deixa de ser escolha e torna-se relógio. Está em todo o lado, a fazer tic-tac, mesmo que ninguém esteja a ouvir.

Ignorar um relógio pode ser fácil, mas ignorar o ritmo que ele impõe é outra história. Num instante, o estranho de ontem transforma-se na norma de hoje, e quem ousa dizer “não” torna-se o novo “diferente”.

Um monte sem internet, um campo sem sensores, uma azinheira que guarda histórias sem disco rígido — tudo isso não é apenas o passado, é uma decisão sobre o futuro. Vivemos num momento em que “não ter” certas tecnologias já não é uma escolha inconsciente, mas um manifesto de resistência.

Talvez por isso importe entender que ignorar a tecnologia e escolher viver sem ela são coisas distintas. Uma é distração; a outra, intenção. E há uma sabedoria profunda no ato de dizer “não” de forma consciente. Recusar não é rejeitar por desconhecimento, mas afirmar um conhecimento mais profundo — saber o que se deixa de lado e porquê. A escolha informada é o caminho certo, porque nos ensina a navegar entre o essencial e o supérfluo, a encontrar a harmonia entre o tempo que controlamos e o tempo que nos controla.

No Alentejo, onde o tempo se mede pelo crescimento da oliveira ou pela fermentação na talha, o ritmo das tecnologias pode parecer um contraste gritante. A terra tem um tempo próprio que é sazonal, um ciclo que respeita o que foi e o que virá. Já o tempo da tecnologia não conhece pausas. É global, linear, e avança como um rio que nunca dorme, encontrando sempre o seu caminho.

O desafio, então, não é escolher entre um ou outro, mas perceber como os dois tempos podem coexistir. Porque há tecnologias que são como ampulhetas: servem ao homem quando ele precisa delas, ajudam a medir o momento, a valorizar o presente. E há tecnologias que são relógios: constantes, implacáveis, sempre a avançar, mesmo quando o mundo pede um tempo para arrefecer as ideias.

Ainda assim, há algo que o tempo das tecnologias e o tempo da terra e das suas gentes podem aprender um com o outro. O tempo das tecnologias pode ensinar o tempo da terra a olhar mais longe, a antecipar desafios e a preservar o que é essencial para as gerações futuras.

E o tempo das suas gentes pode ensinar as tecnologias a serem mais humanas, a saber parar e ouvir o silêncio entre os segundos. Talvez o segredo esteja em transformar os relógios em novas formas de ampulhetas — tecnologias que medem, mas que esperam pela nossa mão para avançar. Assim, o tempo deixa de ser imposto e volta a ser vivido.

Porque, no final da tarde, quando o sol pinta de dourado a planície a perder de vista, percebemos que o relógio e a ampulheta não são opostos, tal como as tecnologias não precisam de andar de candeias às avessas com a terra e as suas gentes. São apenas duas formas de nos lembrarmos de uma verdade simples: o tempo é sempre o que fazemos com ele.

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BRUNO HORTA SOARES
É p'ra hoje ou p'ra amanhã

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