Em março de 1990 escrevia Joaquim Vermelho que no centro oleiro de Estremoz, à semelhança “do que já vem acontecendo há algumas décadas”, funcionavam apenas as olarias de Leonor das Neves da Conceição Herdeiros e a Regional, de Mário Lagartinho, “funcionário que nela se fez mestre e proprietário”. As duas, informava o autor de Barros de Estremoz, situavam-se na “zona histórica do burgo”, a de Leonor das Neves na Rua dos Fidalgos, a de Mário Lagartinho na Rua do Afã.
“Em qualquer das oficinas há necessidade de um local para o empeladouro (onde se colocam as bolas de barros – pelas – para confecionar as peças); outro para os tornos; outro para as mesas de trabalho de decoração e acabamento; locais para as polideiras e escarpideiras; zonas para as operações de tintagem e de secagem”, assinalava.
Às “áreas de decoração” daremos atenção mais à frente, por agora interrompe-se a história, para irmos ao encontro de Inês Crujo, responsável pela Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz, cujas instalações foram recentemente inauguradas na antiga Casa da Câmara de Évora-Monte.
Como surgiu a associação?
A associação surgiu de um curso de olaria que existiu em 2021, no Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz. Eu tinha acabado de entrar para o Centro Interpretativo, como funcionária, e surgiu a oportunidade de poder ingressar nesse curso. Aceitei, apesar de nunca ter estado, de maneira alguma, ligada ao barro, nunca tinha mexido no barro, e posso dizer que, com 34 anos, descobri o que realmente gosto de fazer, meter as mãos no barro, adoro aquilo que faço… e criámos a associação.
Porquê?
Éramos um grupo muito coeso. O nosso formador foi o mestre Xico Tarefa [Francisco Rosado], que é um avô para mim, foi o grande impulsionador desta associação. Todos juntos criámos este projeto, com a ideia de recuperar a olaria tradicional de Estremoz, que já não existe, desde o en- cerramento da olaria do Mário Lagartinho, que foi a última. A nossa ideia é voltar a trazer as memórias da nossa olaria tradicional.
De que forma?
Temos como objetivo começar a fazer workshops, fazer protocolos com as escolas, com a Cerci, apostar na formação, participar em feiras e exposições e dinamizar muito esta arte que já não existe.
Portanto, houve um antes e um depois dessa formação?
Eu trabalhava numa escola, ainda que a minha área formativa fosse a do serviço social… bom, não tem nada a ver com escolas, nem com museus. Entretanto, entrei para o Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz, faço visitas guiadas, temos o serviço educativo, aulas extracurriculares, a Academia Sénior… e, agora, tenho a As- sociação Dinamizadora da Olaria de Estremoz, um hobby que muito aprecio, e para a qual todos nós trabalhamos.
Dedicam-se todos à produção de peças?
Tentamos dedicar-nos à produção de peças, sim.
Que isto da olaria é tradição antiga em Estremoz há abundante prova documental, a começar pelos forais Afonsino (1258) e Manuelino (1512), onde, por exemplo, se impõe o pagamento de quatro reais por “carga mayor” de “toda a louça de barro do regno [reino] que nom seia vidrada”, a Cosme de Médicis III, que por aqui andou em finais do século XVII, referindo-se a Estremoz como “a terra onde se encontra o barro vermelho mais fino e mais estimado de todo o Portugal”.
Aliás, num relato sobre a sua visita à corte portuguesa, citado por Joaquim Vermelho, o cardeal Venturini, enviado a Portugal pelo Papa Pio V refere: “Sobre a mesa estava sempre um grande vaso de prata cheio de água do qual se deitava em um jarro, chamado na língua portuguesa púcaro, do feitio de uma urna antiga, da altura de um palmo, e feito de um barro vermelho, subtilíssimo e luzidio, que chamam barro de Estremoz, pelo qual o rei bebeu seis vezes”.
Já Carolina Michaelis, escritora e pro- fessora universitária, uma prussiana que casou com Joaquim Vasconcelos, considerado como o “real fundador” da história da arte em Portugal, assinala até a “extravagante pucarografia” que testemunhou: “Ao beber água fresca por um púcaro novo de barro vermelho de Estremoz (…), era elegante com uma dentada tirar-lhe um pedaço do bordo, que era roído, com singular prazer, em especial pelas meninas desejosas de adelgaçarem o corpo em linhas de impecável elegância”.
Por essa altura, finais do século XIX, “a olaria ainda mantinha uma certa vitalidade, resultante sobretudo do seu cariz utilitário como baixela das classes mais modestas”, assinala o autor de “Barros de Estremoz”, explicando que o “bairro das olarias” se situava na zona do Outeiro, junto ao baluarte setecentista de Palhais, ainda que algumas famílias de oleiros se distribuíssem também “pelas ruas circunvizinhas do pequeno bairro – as do Pintor, dos Carvoeiros, dos Currais, hoje Brito Capelo”.
Antes do retomar da conversa com Inês Crujo, fixemo-nos um pouco mais na descrição que Joaquim Vermelho faz da vida no dito bairro dos oleiros: “Contam velhas testemunhas, a senhora Georgina entre outras, ainda ligada à minha família, e moradora naquela zona desde longa data que, nos fins de semana, o Ti Lúcio aparecia com o seu burrico de albardas ou com o carrito de dois varais puxado pelo mesmo animal, com a sua carga de barro que de outras zonas do concelho aqui o vinha colocar pela sua qualidade, fazendo-se pagar por isso, pois era frete encomendado”.
Bom, Inês Crujo, a associação não é dirigida propriamente aos Bonecos de Estremoz?
Os Bonecos de Estremoz são uma arte popular com mais de 300 anos e com uma técnica específica que foi classificada Património Imaterial da Humanidade. A olaria de Estremoz corresponde às peças feitas na roda de oleiro, com uma técnica muito diferente. Falamos, por exemplo, dos pucarinhos e das cantarinhas, onde anti- gamente se colocava a água, e que se levavam para o campo, distinguindo-se das outras pelos riscados, pelo pedrado…
À semelhança da de Nisa?
Nós utilizamos uma ou três pedrinhas, o que a torna diferente da de Nisa, pois essa é toda pedrada. A nossa é decorada principalmente com folhas e bolotas, e com motivos fitomórficos. Temos também os depósitos de água, muito bonitos, que imitam o tronco de uma árvore, depois tem a saída para a água, e de onde saem figuras de cobras e lagartos… temos os pratos, também decorados de forma tradicional, ainda os “picassos”, uma peça de olaria tradicional mais inovadora e que surgiu mais recentemente, feitos em molde.
Segundo Hernâni Matos, em Estremoz “sempre houve três tipos de decoração” do vasilhame para guardar a água, designa- damente o riscado, o polido e o decorado com “folhas, bolotas e ramos de sobreiro, moldados em barro e colados à superfície”, a que se somam, claro, os tais “picassos” com “formas mais ou menos estilizadas: o peixe, o galo, a cabra, a mulher nua, a sereia”, entre outras.
“Antes da vulgarização dos frigoríficos”, escreve o autor de “Franco Atirador – Textos de Cidadania de um Alentejano de Estremoz”, o vasilhame de barro “era a garantia de se ter em casa, água fresca que nos permitisse dessedentar nos dias de verão”.
Lembra ainda Hernâni Matos que “todas as casas tinham na cozinha, um poial dos cântaros, onde os tamanhos mais correntes eram a terceira (15 litros) e a quarta (10 litros). Aí se ia buscar à fonte ou ao poço, a água destinada ao consumo doméstico”. Depois, “existiam ainda recipientes para água de menores dimensões, como as bilhas, os moringues, as garrafas de água, os barris e os púcaros”, sendo que as bilhas e os moringues destinavam-se ao serviço de mesa.
Claro que a “vulgarização dos frigoríficos deu uma facada de morte nos oleiros, que já tinham levado outra com a implementação dos recipientes de alumínio, a substituir a loiça vidrada”. E em setembro de 2012, quando publicou um texto sobre o vasilhame de barro de Estremoz, Hernâni Matos referia: “Entre nós só já há um oleiro [o mestre Lagartinho], que talvez venha a ser o último oleiro de Estremoz. A olaria estremocense está em risco de extinção. Não se pode fazer nada para o evitar? É que chorar lágrimas de crocodilo depois, é hipocrisia e não resolve nada”.
Quatro anos depois, o “Brados do Alentejo” dava conta da morte de Mário Lagartinho, um “oleiro de nomeada”, o último de Estremoz, considerando tratar-se de “uma tragédia cultural, numa cidade que já foi um dos maiores centros oleiros do Alto Alentejo”.
Acreditam ser possível, através da associação. recuperar essa tradição oleira?
A olaria estava completamente extinta na cidade, surgiu a nossa associação e estamos, de facto, a tentar recuperar essa tradição. Temos algumas peças feitas e em exposição na nossa sede… sim, queremos manter a olaria viva e conquistar mais pessoas, incentivar os jovens para esta arte do barro, ainda que sejam muito poucos os que se interessam por estas coisas. Queremos que a olaria se torne viva, outra vez, e os ensinamentos do mestre Xico Tarefa foram muito importantes para nós, ajudou-nos muito.
Tarefa é a alcunha que mestre Francisco Rosado herdou do seu trabalho como oleiro. Nascido em 1951, é justamente considerado “um dos mais consagrados oleiros” de Redondo, tendo iniciado o seu percurso nesta arte com apenas 13 anos, pela mão de mestre Ezequiel Campainhas. Três anos depois torna-se ele próprio mestre, aprimorando a técnica e desenvolvendo um trabalho cujos “desenhos assentes na ruralidade e intemporalidade dos tempos são seu ponto forte”.
No início do século, refere fonte municipal, abriu o seu próprio espaço, a Olaria XT “admitindo que desde então os avanços tecnológicos melhoraram em muito a forma de trabalhar a olaria tradicional mas sempre se pautou no respeito pela arte tradicional e nunca esquecendo os ensinamentos e experiências que adquiriu com os seus mestres”. À tarefa de oleiro, alia Xico Tarefa a missão de promover a olaria e ajudar a formar oleiros, à semelhança do tal curso do qual resultou a Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz. Oficialmente constituída em 21 de janeiro de 2023, só agora, passados mais de dois anos, conseguiu encontrar uma sede.
Foram dois anos de luta?
Sim, de luta por uma sede. Inicialmente queríamos uma sede em Estremoz, mas por vários motivos não conseguimos. Como o grupo já se começava a separar, pois as pessoas estavam a perder o interesse, alargámos essa área geográfica e abrimos agora em Évora-Monte, num local lindíssimo. Olhe, tivemos visitantes mesmo antes de abrir, pessoas que passavam e tiveram curiosidade em entrar, numa altura em que ainda estávamos a preparar o espaço. Além disso, temos também imensas inscrições de pessoas que querem fazer formação connosco, que querem aprender, participar em workshops… acho que vai correr bem.