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Parecer e ser. Notas a propósito do novo livro de José António Falcão

“Parecer e Ser - Excursus Vital de D. António Paes Godinho, Bispo de Nanquim”, de José António Falcão, agora lançado pela associação Orik, é sobre um homem que recusou o aparato, não se deixou perverter pela circunstância da sua época e gostava de se apresentar como um clérigo comum, muito abaixo, pois, da sua condição. Vítor Encarnação (texto)

A primeira coisa que me captou a atenção foi o título – “Parecer e Ser”. Independentemente do conteúdo do livro, que eu ainda não conhecia, o título, pela sua força, pela sua dicotomia, já me permitia fazer uma incursão nos campos da religião, da literatura e da filosofia. 

Entre a abordagem popular de António Aleixo – “sei que pareço um ladrão” -, passando pelo provérbio – “bem prega Frei Tomás…”,  e pelo aforismo “as aparências iludem” até à, julgo que posso afirmá-lo, mais famosa frase da literatura mundial – “ser ou não ser, eis a questão” – encontramos variados pensamentos e posicionamentos que têm em comum a diferença entre a aparência e a essência, entre a superfície e o âmago. 

Desde os primórdios da humanidade e da construção social que estes temas têm sido tratados e por causa deles, no domínio da religião, das ciências comportamentais e das leis, definidos princípios, valores e normas que permitam que a ética prevaleça sobre a imoralidade, a essência sobre a aparência, a justiça sobre a injustiça. Mas, quer nas grandes questões grafadas pela história, quer na banalidade do nosso quotidiano, podemos concluir que nem sempre isso é verdade, ou seja, a aparência, envolta em belos conceitos teóricos, triunfa muitas vezes sobre a nudez da substância.  

Pedro, um dos apóstolos de Jesus, disse: “A beleza não deve estar nos vossos enfeites exteriores, como cabelos trançados e joias de ouro ou roupas finas. Pelo contrário, deve estar no ser interior, que não perece, beleza demonstrada num espírito dócil e tranquilo, o que é de grande valor para Deus”.

Mateus, outro dos apóstolos de Jesus, apregoa: “Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniquidade”.

O missionário, teólogo, diplomata e orador, Padre António Vieira disse que “quem em tudo quer parecer maior, não é grande”.

Nos Lusíadas, Baco, o deus contrário à viagem dos portugueses, encarregado de semear obstáculos no seu caminho, é o exemplo perfeito do engano e da dissimulação: “E se inda não ficarem deste jeito/ Destruídos, ou mortos totalmente/ Eu tenho imaginado no conceito/ Outra manha e ardil, que te contente:/ Manda-lhe dar piloto, que de jeito/ Seja astuto no engano, e tão prudente,/ Que os leve aonde sejam destruídos,/Desbaratados, mortos, ou perdidos”.

 Na obra fundamental de Shakespeare, Otelo, o Mouro de Veneza, proclama perante o jogo de máscaras em que se tornou a sua própria vida que “os homens deveriam ser o que parecem”. Shakespeare foi, em muitas das suas obras, exímio a apontar e a pôr a nu toda essa construção social cínica e hipócrita com o intuito de dissimular, de enganar para vencer, de conquistar a qualquer custo.

Albert Camus, nos Cadernos – Esperança do Mundo escreveu o seguinte: “Sempre que cedemos às próprias vaidades, sempre que pensamos e vivemos para ‘parecer’, nós traímo-nos. Muitas vezes, foi a desgraça de querer parecer que me diminuiu diante do verdadeiro “. 

Para Platão, a grande missão do homem é a de, pela via intelectual, ascender ao superior mundo da ideia, libertando-se, simultaneamente, do corrompido mundo sensível ou das aparências. Diz ainda Platão que o suprassumo da injustiça é parecer justo sem o ser.

Schopenhauer defende ainda que o sujeito, ao relacionar-se com o mundo à sua volta, deve ser regido por uma ética, fundamentada por ele na noção de compaixão.

Nietzsche afirma que “quem sabe que é profundo busca a clareza; quem deseja parecer profundo para a multidão, procura ser obscuro”. 

Apesar de ter vivido durante o reinado de ouro de D. João V, esse tempo paradoxal, tempo de excessos, tempo de ostentação mas também de despojamento e de ascese, e nos anos finais do barroco, estilo que apregoava o dualismo e o exagero e no qual as duplas noções ser/ parecer, verdade/mentira, realidade/ilusão, superfície/profundidade, cheio/vazio, constituem os elementos fundamentais de toda a sua prática artística, teológica, filosófica, ideológica, D. António Paes Godinho sempre mostrou desprezo pelo fausto, preferindo uma prática caritativa e escrupulosa, numa constante demanda de autenticidade.

O alentejano de Santa Luzia, à época freguesia do concelho de Garvão, pese embora a importância dos cargos que desempenhou ao longo da vida, cultivou sempre uma maneira de ser e de estar bastante singela. 

Foi essa a grande característica que o distinguiu num tempo e num espaço em que o luxo e a etiqueta eram condição para a promoção social. Ele conseguiu sempre ser em vez de parecer. Conseguiu ser um humanista sem romper com Deus e com a religião.   

Ao longo do livro, subvertendo de certo modo a ordem vigente, encontramos inúmeras referências a esse seu desapego pela matéria e a preferência pela espiritualidade. “Homem detentor de bonomia, candura, fleuma e sinceridade”; “de pendor conciliatório”, magnânimo, capaz de perdoar uma tentativa de assassinato; mestre na arte de usar a brandura e a inteligência para emendar situações irregulares em vez do castigo; confessor público de defeitos; amante das suas raízes, dizia que nascera para ser mandado e não para governar; fugia ao desejo de poder; avesso ao nepotismo; amante da natureza e do paisagismo num apelo aos sentidos.”

Este livro é sobre um homem que recusou o aparato, não se deixou perverter pela circunstância da sua época e gostava de se apresentar como um clérigo comum, muito abaixo, pois, da sua condição. Usava da maior simplicidade, ou seja, preferia a substância à aparência e não abdicava de uma virtude moral manifestada através do exemplo, muito próxima dos ensinamentos de Jesus Cristo.

Este livro Parecer e Ser – Excursus Vital de D. António Paes Godinho, Bispo de Nanquim parece ser importante e de facto é importante.

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