Abordar o Alentejo Central no século XXI e o seu panorama cultural, artístico, patrimonial e criativo, inscrevendo nele não apenas uma tonalidade descritivo-factual, mas também algumas visões sistematizadas e propostas de pensamento-ação, será sempre um exercício incompleto, subjetivo e questionável, ainda mais quando se analisa um território tão vasto e pleno de diversidades, dualidades e contrastes.
A primeira consideração, de âmbito macro, prende-se com uma dupla constatação de cariz socioeconómico, com implicações diretas e indiretas no universo cultural: nos últimos anos, tem-se assistido a uma maior proliferação de empresas e serviços (ligados a diversos ramos de atividade, como a tecnologia, o agroalimentar, a sustentabilidade, a hotelaria, a produção vinícola) em vários pontos do Alentejo, fruto também da crescente ambição e especialização dos seus promotores e das vantagens dos sistemas de incentivos em vigor, mormente os de diferenciação positiva dos territórios de baixa densidade.
Por outro lado, e com especial incidência na fase pós-pandémica, verifica-se um incremento gradual do fluxo migratório do litoral (nomeadamente, mas não só, das áreas metropolitanas) para zonas do interior do país, atendendo ao aumento dos custos de vida nas grandes urbes, à maior disseminação das práticas de teletrabalho e a uma notória revalorização da vida rural – tendências gerais que serão ainda mais percetíveis nos censos populacionais de 2031.
Em termos artísticos, é possível também identificar um conjunto de agentes profissionalizados (em nome individual e estruturas associativas) que tem vindo a privilegiar a zona central do Alentejo para a sua instalação e implementação de projetos, isto por razões diversas: ligações afetivo-familiares; empatia com as características e potencialidades culturais dos territórios do interior, numa lógica de desafio; a identificação de geografias específicas com oferta cultural menos robusta em densidade e diversidade, procurando-se colmatar essas lacunas; maiores probabilidades de sustentabilidade (em termos de captação de financiamentos) por menor concentração de entidades artísticas em alguns concelhos; assumida colaboração e apoio de certas autarquias aos processos de integração dessas entidades.
Estruturas como, entre outras, O Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo) ou a Malvada, Associação Artística (Évora), que trabalham na área do cruzamento disciplinar, são bons exemplos desse movimento (ainda que com históricos diferentes), inclusive da reconhecida capacidade de – a partir de uma imersiva integração inicial na realidade local e de uma progressiva construção de ligações regulares, consistentes e transformadoras com os contextos e as comunidades – ganhar depois escala, circular fora da região, estabelecer parcerias e redes colaborativas, envolvendo e atraindo para o Alentejo Central outros agentes, dinâmicas e abordagens criativos.
Na verdade, o eixo Évora-Montemor-o-Novo constitui, neste momento, um ecossistema de assinalável vitalidade no Alentejo, sobretudo no que concerne ao terceiro sector cultural e artístico. Um breve olhar mais atento sobre os equipamentos e entidades apoiados pela Direção-Geral das Artes em toda a região alentejana a nível quer do apoio sustentado às estruturas independentes, quer do financiamento das novas redes culturais lançadas nos últimos anos, permite constatar que a maior percentagem de entidades está sediada e atua regularmente nesse amplexo geográfico, ainda que, conforme os casos, com uma abrangência de intervenção tendencialmente supra-regional, nacional e até europeia.
Assim, atualmente o Alentejo Central apresenta cinco equipamentos credenciados na Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (dois em Évora: Teatro Garcia de Resende e Armazém 8, este último um espaço independente; Auditório Municipal de Portel; Teatro Bernardim Ribeiro, em Estremoz; e Cineteatro Curvo Semedo, em Montemor-o-Novo), sendo dois deles apoiados financeiramente pela mesma rede (Teatro Garcia de Resende e Cineteatro Curvo Semedo).
Somam-se ainda três entidades ligadas à arte contemporânea integradas na mais recente Rede Portuguesa de Arte Contemporânea (Associação pó de vir a ser, de Évora; Córtex Frontal, de Arraiolos; e Galeria Aqui D’El Arte, de Vila Viçosa), tendo as duas primeiras sido alvo de apoio no âmbito do programa de financiamento da RPAC lançado em 2024.
Quanto ao apoio sustentado da Dgartes, na modalidade quadrienal (2022-2026) – tipologia de financiamento associada a estruturas culturais e artísticas mais consistentes, robustecidas e de maior histórico e impacto territorial – o Alentejo Central integra oito das 11 entidades abrangidas em toda a região, a saber: O Espaço do Tempo, Alma d’Arame, Oficinas do Convento, Projecto Ruínas (todas de Montemor-o-Novo), Cendrev, a bruxa Teatro, PedeXumbo e Companhia de Dança Contemporânea de Évora (estas de Évora).
Nos apoios bienais (2022-2024 e 2025-2026), além das já aludidas Malvada e Córtex Frontal, juntam-se a Associação Cultural Sinistra e a cooperativa Trimagisto, ambas sediadas em Montemor-o-Novo.
As áreas disciplinares da dança (da contemporânea à étnica), teatro, artes plásticas e cruzamento disciplinar têm assumido assim, no caso do Alentejo Central, uma clara preponderância no que toca ao sector profissionalizado apoiado pelo Ministério da Cultura nos últimos anos. Esses segmentos artísticos têm registado um incremento assinalável, sobretudo com o surgimento de novas estruturas que têm apostado, por um lado, em práticas de criação, programação e mediação dotadas de maior contemporaneidade, experimentalismo, ousadia/risco e multidisciplinaridade, e, por outro, numa filosofia de trabalho assente no trabalho em rede, na colaboração, na participação das pessoas e na descentralização/disseminação.
A área da música é igualmente um motor cultural desta sub-região, sobretudo em Évora, com entidades como a Associação Eborae Mvsica/Conservatório Regional de Évora e a Universidade através da sua Escola de Artes (com oferta em Música, Ensino da Música e Musicologia, entre outras disciplinas) a darem o mote, sendo fundamental que haja depois um ecossistema cultural e artístico local/regional capaz de absorver, em termos de mercado de trabalho, profissionais formados nestas instituições de referência.
Isto sem esquecer a relevante herança a nível da música sacra simbolizada pela escola de Música da Sé Catedral de Évora (que atingiu grande notoriedade nos séculos XVI a XVIII) ou o enfoque na tríade arquitetura-cidadania-urbanismo, sendo ambas áreas estratégicas que podem ser ainda mais densificadas e aprofundadas através de projetos multidisciplinares e interpretativos, conforme, aliás, previsto no ‘Bidbook’ da candidatura vencedora de Évora a Capital Europeia da Cultura 2027.

Junta-se a isto, nas últimas décadas em Évora, uma programação municipal intensa e com um reiterado enfoque na música étnica/world music e no diálogo intercultural pela música (eventos como o “Artes à Rua”, o “Imaterial”, etc.), o qual gerou estimulantes projetos de cocriação, coproduções/encomendas e colaborações criativas entre artistas de diferentes estilos, influências e latitudes, bem como diversas parcerias institucionais ao longo dos anos – processos culturais estes que é fundamental recuperar, consolidar e reinventar.
O consistente e continuado trabalho realizado também por outras entidades independentes, como, por exemplo, a Fundação Eugénio de Almeida/Cartuxa a nível das artes visuais e performativas, e do conhecimento e reflexão crítica, tem permitido diversificar abordagens, pensar e questionar os territórios, e gerar renovados diálogos entre criadores, críticos e públicos.
Por seu lado, o binómio cultura-turismo representa, neste território (como em todo o Alentejo), um ativo socioeconómico fundamental. Daí que a articulação estratégica entre a potência natural e emocional da paisagem, a sociabilidade informal mediterrânica e os produtos culturais endógenos se afigure essencial como proposta de valor para alavancar os 14 municípios desta comunidade intermunicipal. E isso passa não apenas pela aposta em sectores em acelerada expansão e afirmação nacional e além-fronteiras (como o enoturismo e os turismos rural, gastronómico e patrimonial), como por outros segmentos que estão em franco crescimento.
Um deles é a observação astronómica, sendo o Grande Vale do Alqueva considerado um dos melhores lugares do mundo para desfrutar das estrelas e tendo sido o primeiro destino Starlight no mundo, abarcando vários municípios do Alentejo Central (Alandroal, Reguengos de Monsaraz, Portel e Mourão). Outra tipologia será o turismo literário (e suas conexões com a narração oral), tendo a Entidade Regional de Turismo do Alentejo e Ribatejo lançado em 2024 a primeira edição do LiterÁrea, envolvendo vários parceiros das duas regiões, e promovido o lançamento da Rede de Hotéis Literários, a primeira do país. Ou ainda o turismo pedestre, explorando os múltiplos benefícios do caminhar para a saúde física e mental num território onde domina a quietude, a visualidade, a abertura e o vagar. Neste ponto, o Alentejo Walking Festival, em 2024, foi um bom exemplo de promoção da rede de percursos pedestres e de formação das equipas territoriais de turismo, património e cultura.
Note-se, aliás – e, no fundo, trata-se de tendências programáticas revalorizadas e mais incrementadas após o período pandémico, ainda que com antecedentes –, que têm vindo a surgir um pouco por todo o Alentejo, inclusive na sua zona central, diversos festivais culturais e eventos similares que, apostando no potencial cénico e ambiental da morfologia natural alentejana, privilegiam o segmento híbrido da arte na paisagem, uma agenda de propostas não densa e micro e médias-escalas a nível de público. A oferta é composta, geralmente, por percursos sensoriais imersivos, rotas comentadas, instalações multidisciplinares, concertos e performances inusitados, debates em locais não convencionais e workshops informais, e tem vindo, visivelmente, a atrair um crescente e ecléctico número de adeptos, quer locais quer provindos das principais urbes.

O Alentejo também é esse labirinto sócio-ecológico que enfrenta desafios como a gestão hídrica, o despovoamento e a desertificação, e a sua zona central não foge à regra. Daí que se esteja a instaurar, cada vez mais, também como território-experiência, na procura de novas soluções em termos de aproveitamento da terra, através de processos de agricultura regenerativa, permacultura, agroecologia. De índole comunitária e baseados no cuidado com o solo e as pessoas, estas práticas assentam num modelo de governança colaborativa visando a sustentabilidade dos ecossistemas.
Nesta linha, projetos como, entre outros, o Terramay Portugal, no Alandroal, ou a Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo, estão a investir declaradamente nesta estratégia, sendo que o património cultural imaterial e as artes podem ter, nesta mundividência em ascensão, um papel importante enquanto valências ora aglutinadoras ora complementares devidamente alinhadas com modelos de sustentabilidade e de turismo regenerativo. Festivais como o “Soil to Soul”, no Alandroal, ou o “Ponto d’Orvalho” no referido Freixo do Meio são alguns dos exemplos que se inscrevem nesta filosofia.
Refira-se ainda, no Alentejo Central, a criação em 2023 da BIALE – Bienal Internacional do Alentejo, com epicentro em Estremoz e dinamizada pela associação cultural A.R.T.M.O.Z. com diversas parcerias locais e externas. É mais um exemplo, até a julgar pelo tema da edição deste ano (arte, ambiente e ruralidade), de uma outra abordagem – aqui através da arte contemporânea e com um vincado posicionamento a nível de internacionalização – às questões da sustentabilidade, cultura local e educação ambiental. Ora, o “corredor” Évora-Arraiolos-Estremoz pode configurar, a nível das artes plásticas nesta zona central da região alentejana, um ecossistema com assumido potencial de articulação e expansão, ancorado em parcerias e redes entre si e com outros centros de criação e programação artísticas congéneres situados noutras zonas do Continente e dos arquipélagos.
Uma nota ainda para o património cultural imaterial (PCI), sendo que o Alentejo abarca diversas manifestações de saber-fazer tradicional que estão classificadas e protegidas a nível da Unesco, destacando-se o cante, a manufatura de chocalhos, a dieta mediterrânica ou a produção de figurado em barro de Estremoz.
Nestes domínios, além da recolha, estudo, mapeamento, sensibilização educativa e valorização dos respetivos saberes e técnicas, é fulcral investir ambiciosamente noutras dimensões da salvaguarda, as quais têm sido, em vários casos, menos exploradas. Refiro-me a questões-chave como a capacitação técnica, a profissionalização dos agentes, a transmissão sustentada do ‘know-how’ a nível geracional, a dimensão económica, os modelos de negócio, os circuitos comerciais e as estratégias de mercado, ou a máquina de comunicação e ‘marketing’ patrimoniais – o que implica, entre outras condições, um efetivo trabalho concertado entre as áreas governativas da cultura, turismo, economia e educação, e destas com os territórios, numa lógica de proximidade e escuta ativa.
A nível da programação cultural e do uso e modalidades de gestão dos equipamentos, há contrastes assinaláveis no universo dos 14 municípios do Alentejo Central. Enquanto num número diminuto de cidades existe uma oferta regular e diversificada, a pensar em perfis de público diferentes e em propostas plurais, na maioria dos concelhos vão prevalecendo, como práticas mais usuais, uma agenda muito centrada na área da música, conteúdos da esfera do mainstream ligados à animação e entretenimento para massas, e atividades realizadas sobretudo em contextos ‘outdoor’ (formatos de festas de verão, arraiais, romarias, feiras temáticas de escala variável e festivais/encontros populares).
No que toca aos espaços culturais, observam-se vários cineteatros e auditórios com funcionamento intermitente – realidade transversal, aliás, a vários pontos do Alentejo –, sem programação continuada e sem recursos humanos qualificados alocados aos mesmos.
Outros carecem de obras mais ou menos profundas de requalificação e/ou de aquisição de equipamento técnico, havendo ainda alguns que servem propósitos “utilitários” muito diversos, sem preocupações de maior com a coerência ou identidade da sua agenda cultural.
Recorde-se que o “Atlas Artístico e Cultural de Portugal”, publicado em 2024, revela que o Alentejo Central tende a ser, com exceção de Évora, um território com uma despesa total média ou baixa dos municípios em atividades culturais e criativas (dados de 2021). De referir ainda, sobre a refuncionalização dos espaços, que o próprio Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) está a implementar equipamentos de projeção digital de cinema (no âmbito da sua medida de transição digital nas redes culturais) em inúmeras salas, inclusive no Alentejo, o que permitirá apresentar uma oferta de cinema em condições técnicas mais atrativas e contribuir, com uma mediação cultural adequada, para uma maior formação de públicos relativamente à sétima arte, nomeadamente em zonas do interior.
Sabe-se que as características convidativas do clima no Sul/Alentejo, bem como a possibilidade de abranger maior quantidade de público em espaços exteriores, aliadas a uma visão política por vezes redutoramente quantitativa sobre o impacto da oferta cultural e desprovida de estratégia para essa área, contribuem igualmente para a manutenção e até fossilização de determinadas práticas de programação pública nos territórios.
Daí que seja premente um olhar mais assertivo, sensível e proativo das autarquias sobre o universo de teatros e auditórios que estão sub-potenciados ou pouco utilizados na região do Alentejo (processo já em curso, mas que necessita de maior investimento dos autarcas), de modo a que se possa dinamizar os mesmos e diversificar a sua utilização através de visões, modelos de gestão e recursos adequados – processos decisórios esses que devem ser participados e discutidos com as populações e as várias entidades do terceiro sector, auscultando as suas necessidades e expectativas. Até de modo a evitar uma excessiva municipalização da cultura, e contribuindo assim para a assunção de novas centralidades e protagonistas.

Para estes desideratos, é necessário também um aproveitamento consistente dos fundos comunitários, não só ao nível do programa operacional regional (Alentejo 2030) como de outros financiamentos europeus (Europa Criativa, EEA Grants Portugal [para territórios de baixa densidade], Horizonte Europa, etc.) e/ou oriundos de instituições privadas (Fundação Calouste Gulbenkian, BPI/Fundação “La Caixa”, etc.).
Para que estes apoios possam não apenas dar respostas a carências estruturais, como ainda incrementar as práticas de formação de consórcios e redes entre agentes do território para fins de candidaturas, para além de contribuírem para uma maior profissionalização e robustecimento do tecido cultural e artístico independente. Por outro lado, é fulcral sensibilizar a governação central para a necessidade de programas de apoio específicos para a dimensão infraestrutural e para a aquisição de equipamento técnico para os espaços culturais municipais e associativos.
O Alentejo Central carece ainda (e Évora é um exemplo ilustrativo) de alguns equipamentos estruturais e referenciais, de maior capacidade, dotados de recursos técnicos, logísticos, humanos e financeiros que possam dar resposta adequada aos desafios derivados de um desejado posicionamento cultural mais ambicioso da região (e da cidade), bem como de outros espaços (novos ou adaptados, de dimensão variável e moduláveis) que sirvam funções mais específicas associadas à pesquisa, debate, experimentação e investigação artísticas, como centros de residência, salas de ensaio, estruturas de ‘coworking’, ‘hubs’ criativos.
Por fim: este Alentejo ao centro precisa de apostar, com foco e determinação, quer na capacitação técnica, reconversão profissional e empoderamento dos seus agentes culturais e artísticos ligados ao terceiro sector, autonomizando-os cada vez mais, quer em planos de captação de criativos/talentos e de massa crítica para os seus territórios, adotando estratégias de atratividade abertas, integradas e sustentáveis que permitam ligações virtuosas entre vários sectores de atividade. Só através deste duplo movimento poderá também aspirar, no plano cultural, a um desenvolvimento mais integrado e sustentado, a uma maior coesão territorial (com redução de assimetrias intra e inter-regionais), a uma necessária projeção nacional e no domínio internacional.
Vem aí a Capital Europeia da Cultura em Évora, sendo uma oportunidade estratégica (ainda que não deva ser nem um ponto de partida nem uma paragem final, mas um passaporte-ponte) para, no seu programa de ação, a cultura, património e artes poderem alimentar também um outro fito maior: uma reflexão coletiva, crítica e consequente, sobre as cidades e os lugares da contemporaneidade, mormente em torno da sua urdidura, significado e impacto espaciais, temporais, cívicos, simbólicos e psicossociais. Porque a conetividade e a integração têm de ser os princípios basilares que desenham a urbe, para mais proximidade e mobilidade económica e social, que é como quem diz, para uma maior humanização, inclusão, equidade e “vida do espírito”. No fundo, para que a democracia nos salve nessa noite escura.
PAULO PIRES é gestor cultural e programador