Pedro do Carmo: “É importante que os autarcas saibam ler os sinais”

Pedro do Carmo, deputado socialista eleito por Beja, alerta para a necessidade de os autarcas compreenderem o descontentamento expresso nas urnas. “É importante que saibam ler os sinais”, sublinha, referindo que o avanço da extrema-direita resulta do abandono do interior, da ausência do Estado e da falta de respostas a problemas concretos como a habitação, os serviços públicos e a exclusão do mundo rural das prioridades políticas. Luís Godinho (texto)

As legislativas de maio mudaram boa parte da configuração política do Alentejo, que passou do “rosa” socialista para os populistas de extrema-direita em diversos municípios. Em entrevista à “Alentejo Ilustrado”, Pedro do Carmo, agora de regresso ao Parlamento, aponta explicações para o crescimento do Chega, mas não deixa de olhar para o interior do PS, partido que “se deixou rotular” demasiado à esquerda, “perdeu o centro” e viu “fugir-lhe” boa parte do eleitorado.

Como analisa os resultados das legis- lativas?

Não podemos separar a questão regional do nacional. Sabíamos que esta onda dos extremismos, principalmente da extrema-direita, iria chegar cá, só não sabíamos quando. Fomos resistindo, mas ela tem vindo a avançar noutros países e cá chegou. E chegou por muitos fato- res, quero contar um deles. Há muitas pessoas, hoje, que acreditam mais no virtual que no real. Durante a campanha uma pessoa, que conheço há muitos anos e de quem gosto, dizia-me não votar no PS devido à questão dos imigrantes… por não gostar de imigrantes. Curiosamente vive num concelho onde há poucos imigrantes e alguns até são seus clientes, classifica-os como “gente boa”. Então qual é o problema? É que tinha visto um vídeo nas redes sociais, que se calhar até é falso, onde havia uns indivíduos a violar uma criança, sabe-se lá onde.

Qual a conclusão?

Confrontada com a sua própria realidade, esta pessoa diz não existir problema nenhum com os imigrantes, que até são seus clientes, mas isso não muda o sentimento abstrato, construído a partir de algo virtual e potencialmente falso. Mas este sentimento acaba por ter mais valor que a própria realidade, e isso é uma realidade que temos de discutir. Acho que este exemplo demonstra muito do mundo em que vivemos.

Em todo o caso, o extremismo chegou e com estrondo.

E não me parece que fosse expectável, pensei que o Chega mantivesse mais ou menos a mesma votação. Note que este voto também servem de escape para justificação de muitos problemas no interior do país. Uma das áreas em que o Estado tem muita culpa prende-se com a falta de respostas para a integração das pessoas, prejudicando todos. Repare: há necessidade de, em terras pequenas, concelhos do interior alentejano, existirem 50 ou 100 pessoas à porta do serviço de Finanças, ou da Segurança Social, onde só está um funcionário para as atender?

Bom, muitas delas vão aí porque não obtiveram resposta nos seus concelhos.

Pois claro. E legitimamente viram uma oportunidade para resolver os seus problemas. Conseguiram ser atendidas, levaram os amigos, mas quem reside nesse concelho tem muito mais dificuldade em aceder aos serviços. Ora, os sucessivos governos já deveriam ter criado equipas móveis, com valências idênticas às da Loja do Cidadão, para responder a esta necessidade e facilitar o processo de integração. Foi uma proposta que fiz muitas vezes. E, depois, temos a continuidade do abandono do Estado face aos concelhos do interior, não há ligação ao Estado. Acabaram-se com os Governos Civis, com os serviços locais, passámos a viver numa virtualidade onde o Estado deixou de ter presença nos concelhos do interior. Quem cá vive não aceita isso!

E isso favoreceu este sentido de voto?

É um voto de protesto, de alarme, de alguém que se sente desprotegido e que, com mais facilidade, cai no falso argumento da existência de soluções mágicas para os problemas.

Noto nessa argumentação a inexistência de um olhar interno para o PS, que deixou de ser a força mais votada nos distritos de Beja e de Portalegre.

Bom, o PS não conseguiu passar as suas mensagens, nem dar a essas pessoas as garan- tias que elas pediam. Mas também digo que o PS não teve a melhor abordagem a esta campanha. Poderemos agora fazer muitas análises e encontrar muitas justificações… à posterior é mais fácil. O que é facto é que o PS deixou-se rotular, não foi capaz de se explicar às pessoas, nomeadamente na questão da imigração, nas carreiras da Administração Pública e face a um conjunto de obras que andou sucessivamente a adiar. Tem de haver um olhar diferente para o interior, com políticas de discriminação positiva… não sucedeu, pagou-se caro. Claro que o PS tem de fazer uma reflexão interna. Nestas eleições, o PS perdeu o centro político, até acredito que tenha conquistado votos à sua esquerda, mas viu fugir-lhe muito eleitorado do centro.

No caso do Alentejo, olha para estes resultados como um epifenómeno, ou traduzirão uma efetiva alteração política?

Acho que uma votação tão expressiva no Chega não se voltará a repetir, até porque não irão conseguir dar resposta a nenhum desses problemas. Agora, há uma situação que já se vinha a verificar desde as penúltimas eleições e que é um crescimento dos partidos à direita. O PS não pode ter um discurso demasiado extremista à esquerda, tem de representar a moderação para poder voltar a ganhar o centro.

José Luís Carneiro enquadra-se nesse perfil?

É indiscutível que tinha este discurso nas últimas eleições internas [ganhas por Pe- dro Nuno Santos]. Sempre foi um candidato visto mais ao centro, com uma postura mais ponderada, viabilizando até alguns acordos pontuais de Bloco Central. Agora, acho que o PS tem mesmo de fazer essa reflexão interna, não pode continuar a apostar em causas que não dizem nada às pessoas.

Por exemplo?

Olhe, o mundo rural ser visto com desprimor, só as causas urbanas serem consideradas interessantes. Não faz sentido termos uma agenda contra a caça, contra as tradições, contra o mundo rural. O que se ganha com isso? O PS sempre foi o partido dos pequenos agricultores, da gente trabalhadora. Sempre defendi esta perspetiva, alertei várias vezes para não entrarmos por esse caminho. Durante anos repeti um exemplo: se a pessoa não tem cuidados de saúde, não tem transportes públicos, não tem acesso ao correio, nalguns casos até perdeu o acesso à televisão, as estradas são más, ninguém lhe resolve qualquer problema e depois vamos exigir a obrigatoriedade de licença para o cão e do veterinário ir lá ao monte ver se o animal não está em ‘stress’… com todo o respeito pelos animais, mas esta- mos a afastar-nos das pessoas.

E a perder votos?

Não tenho dúvidas que sim, que também se perderam votos por essa visão estratosférica dos grandes problemas sociais, sem encontrar soluções para as dificuldades que muitas pessoas sentem no seu dia a dia, designadamente no interior do país.

A habitação, a uma escala regional, é igualmente um problema muito grave.

É um problema grave, como grave é a celeridade com que estes problemas se agravam. Aqui há dez anos, esta questão não se colocava. Nós dois somos da mesma geração, a qual tinha o sonho de comprar uma casa, com juros bonificados. Seguiu-se outra geração para a qual isso não interessava muito, pois queria arrendar num local, depois noutro, em Lisboa ou em Londres, conforme o local de trabalho ou de estudo. De um momento para o outro, toda a gente voltou a querer comprar casa e não há casas para isso, pelo menos a preço acessível. Tudo muda com bastante celeridade e o Estado, hoje, é incapaz de planear, de prever, de tomar decisões para o médio e longo prazo. Tudo é urgente e imediato. Os governos governam à vista, apresentando soluções para o imediato, até porque se não obtiveram resultados amanhã acabam trucidados nas redes sociais. A habitação é bem a prova disso.

Ainda que num contexto de existência de milhares de euros, com a promessa de milhares de casas a construir no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

O PRR é outro problema grave, deu so- nhos às pessoas e a ideia, na sua génese, era perfeita. Só que continua a não chegar à fase de obra, os proveitos continuam a não chegar às pessoas, e isso também se deve muito a uma teia burocrática, horrível, que não deixa construir, não deixa fazer nada. Estamos a risco de haver dezenas ou centenas de obras que ficarão por concluir no final do PRR. Para muitas pessoas, o PRR foi um sonho falhado… recordo-me de ouvir vários discursos a dizer que viria aí tanto dinheiro que não o conseguiríamos gastar e, afinal, é mesmo verdade, não o iremos conseguir gastar, mas pela pior das razões, pela teia burocrática, por todos os impedimentos que não conseguimos ultrapassar.

Além desse navegar à vista, de que falava há pouco, não é menos verdade que quando existe planeamento nem sempre isso se traduz em realizações concretas. Veja-se, no caso do Baixo Alentejo, as infraestruturas e as redes de transporte.

Andamos há mais de dez anos a falar da ferrovia, do IP 8, que ora avança, ora recua, Beja e Portalegre não têm acesso à autoestra- da. Bom, tudo isso vai criando anticorpos e desilusão nas pessoas. São décadas a falar dos mesmos problemas, sem que sejam resolvidos.

Talvez devido à pouca representação parlamentar.

Um dos compromissos que trouxe para esta campanha eleitoral, e que com a nova realidade política será mais difícil de executar, prende-se com essa questão. Não é possível termos um sistema eleitoral como o que temos. Não é possível. Olhe, o distrito de Beja está a cerca de 800 eleitores de perder o terceiro deputado, sendo que Portalegre só já elege dois deputados. Que voz é que temos? Temos de encontrar soluções para isto: ou alteramos o círculo eleitoral de Beja, passando a integrar os municípios do Alentejo Litoral, também para valorizar aqueles concelhos que não se sentem representados; ou avançamos com uma reforma eleitoral semelhante à dos Açores, onde há uma representatividade mínima e um círculo de compensação. Temos que caminhar para isso, sob pena deste sistema colapsar e de fazer colapsar a própria democracia. É uma das questões que quero colocar nesta conjuntura.

Qual o impacto destas legislativas nas próximas eleições autárquicas?

São eleições totalmente diferentes, pois nas autárquicas vota-se mais nos candidatos em concreto, no conhecimento pessoal, nas ligações do dia a dia…

… mas houve sinais vermelhos que se acenderam.

Disso não tenho dúvidas. Um dos sinais preocupantes é muita gente jovem ter optado por votar na direita e na extrema-direita e nalguns concelhos isso é muito preocupante. Essa leitura tem de se fazer. Também é importante que os autarcas saibam ler os sinais. As pessoas votaram desta forma por questões que se prendem com insegurança, falta de acesso à saúde, e outras, muitas delas da competência do Governo, não dos municípios, mas isso pode refletir-se nas opções autárquicas. Cabe também aos autarcas darem esperança às populações, apresentarem propostas mesmo em áreas que não são da sua competência direta. Caso contrário temo que esse voto de protesto possa contaminar as autárquicas.

De que forma?

Olhe, numa localidade onde há pouco, ou nenhum, patrulhamento por parte da GNR, a população pode acabar por responsabilizar a Câmara, talvez até pela falta de meios das forças de segurança, ainda que essa seja uma competência do Estado central.

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