A planície alentejana, pintada de um verde antecipado, acolhe o rebanho de ovelhas do senhor António na Herdade da Buchana, um dos muitos lugares bonitos de montado no Alentejo Central. Aqui, cuida do seu efetivo de 300 cabeças de merinas brancas, de lã fina, com a ajuda dos três border collie que lutam, noite após noite, contra a ameaça dos javalis, que frequentemente atacam a geração mais jovem. A criação de ovinos faz parte da cultura ancestral do ser humano, portadora de um valor ecológico incalculável.
Trazida para a Península Ibérica pelos romanos, tinha três grandes propósitos: a produção de lã, de carne e de leite. Sabe-se que foi na altura do Império Romano que as fibras de lã se tornaram mais finas e de qualidade superior, resultado da seleção praticada e motivo de prestígio de uma civilização mais sofisticada. A lã era mais fácil de fiar do que as outras fibras de origem vegetal, como o linho e o algodão, para além de ser mais quente.
Na Idade Média o comércio da lã prosperou com a Inglaterra e a Espanha a dominarem a produção de ovinos e na Revolução Industrial deu-se o grande salto na sofisticação de equipamentos de tecelagem pensados para trabalhar a fibra natural em alta escala e com baixos custos.
Nesta altura não havia lã que chegasse para satisfazer a procura das grandes fábricas europeias. O trabalho de transformação do fio passou de artesanal para industrial e as mãos das tecedeiras descansaram um par de séculos. A seguir à II Guerra Mundial verificou-se um acentuado decréscimo na importância da lã mantendo- -se essa tendência até à atualidade. A produção mundial de fibras em 2015 alcançou 75 milhões de toneladas, das quais apenas 2% era lã. Há muitas razões que justificam este dado e que começam logo no produtor que não vê a lã das suas ovelhas valorizada.
O senhor António confessou que no ano passado, à semelhança de sempre, tosquiou o efetivo em maio para as aliviar do calor do Alentejo durante os meses de verão, e que o valor de venda da lã não deu para pagar a tosquia. A lã transformou-se num resíduo para as explorações, não há quem a pague a um preço justo porque não há escoamento. Em Portugal existem 16 raças de ovelhas e seis ainda correm risco de extinção, como a churra badana, de Trás-os-Montes.
Apesar de neste quadro comunitário continuar a existir um apoio extra às raças autóctones face, em mais de 50%, a erosão da diversidade genética associada à agricultura e à pecuária é uma realidade. Não se pode pedir ao produtor individual que esteja disponível para ter uma ovelha que lhe rende menos e estas raças estão em declínio porque não cumprem a sua função económica. Há que valorizar a lã e aqui o Estado e as associações são agentes fundamentais.
A Associação Nacional de Criadores de Ovinos de Raça Merina (Ancorme) tem feito um trabalho notável no recenseamento e melhoramento genético dos merinos autóctones com enfoque na produção de lã de melhor qualidade. O secretário técnico da associação, Tiago Perloiro, identifica os dois propósitos fundamentais da associação fundada a 30 de maio de 1990.
“Temos dois objetivos centrais que se complementam: o estudo científico da lã, percebermos quais são os tipos de lã que temos nos nossos animais e, partindo deste diagnóstico, melhorarmos o animal do ponto de vista genético no sentido de ele produzir uma lã mais fina, mais comprida, mais limpa, e consequentemente com melhor rendimento em lavado. Com estas características atingidas os criadores conseguem ter um melhor preço a remunerar este produto”, refere Tiago Perloiro, que também é criador da raça e desde sempre se preocupou com a valorização da lã e acreditou no seu potencial.
É na tosquia, serviço prestado pela associação, que os técnicos da Ancorme classificam e avaliam a finura da lã com vista ao melhoramento da raça. Pretendem uma fotografia daquele animal enquanto produtor de lã. “É necessário sabermos que tipo de lã tem para depois escolhermos os melhores reprodutores. A classificação passa por registar a espessura, o comprimento e a cor que devem corresponder ao padrão daquilo que é a lã tipo merino que se divide em quatro classes: extra, fino, corrente e prima”, acrescenta a técnica Ana Carrasco, enquanto apalpa a lã que sai diretamente da pele da ovelha na herdade da Comenda Grande.
A tosquia, ocorre entre março e maio em dias secos para que a lã não esteja húmida ou enlameada e o pente possa passar mesmo junto à pele da ovelha. Faz-se para o bem-estar do animal e atualmente os tosquiadores, que trabalham com a Ancorme, vêm do Uruguai. Cada um faz, em média, 100 ovelhas por dia e fazem o trabalho completo, ou seja, apanham a ovelha, tosquiam-na e armazenam adequadamente a lã impedindo que ela sofra desvalorização no ato do acondicionamento. Quanto mais fina for a fibra melhor é a qualidade e mais procura há por parte da indústria.
É nas meadas da lã que Rosa Pomar tem vivido nos últimos 10 anos. A designer, proprietária de uma retrosaria no centro de Lisboa, tem dedicado a vida a divulgar a lã produzida pelas raças autóctones e tem à venda na sua sua loja uma paleta de cores de novelos da raça merina. Mais de metade dos novelos que vende têm origem em lãs de ovelhas autóctones. Há algum tempo descobriu a churra badana, a ovelha que produz uma lã mais rústica, utilizada sobretudo no fabrico de tapetes e mantas, o que a levou a passar uns tempos em Trás-os-Montes a falar com os pastores e a acompanhar a tosquia para perceber como valorizar um novelo.
Rosa gosta de conhecer a lã na ovelha e refere que a forma como a tosquia ocorre é determinante no produto final. “Quanto mais sujo ou mesclado de palha estiver o velo mais complicado será trabalhar a lã cuja qualidade será afetada. O fio da churra é pouco suave, mas estou com esperança que se consiga tirar partido das características interessantes que esta lã apresenta como o comprimento, a cor, o facto de ser uma raça que está em perigo de extinção e que é importante divulgar” refere a designer que a seguir ruma à Beira Interior para assistir a todo o processo de transformação na fábrica.
A lã comprada por Rosa Pomar, chega à Têxtil Manuel Rodrigues Tavares para ser lavada no único lavadouro ativo de toda a Península Ibérica. Antes é cuidadosamente escolhida e limpa das palhas. Aquela que está amarela e que tem pontas grossas vai para um lote diferente. Depois desta primeira separação, a lã segue para a linha de lavagem e aqui dá-se uma etapa crucial em toda a transformação. Trata-se de um processo complexo com várias fases em que as fibras vão sendo sucessivamente separadas e lavadas nas enormes cubas do lavadouro.
“Há 20 anos existiam 20 lavadouros na região, agora resta apenas um. A indústria têxtil foi-se desmantelando, em parte, pela grande pressão da China que comprou muito equipamento têxtil na Europa montando no oriente uma fábrica de manufatura com mão-de-obra barata. A capacidade produtiva aumentou exponencialmente e hoje a China é uma das principais exportadoras de fibra sintética no mundo”, acrescenta Manuel Tavares, gestor na empresa, referindo que este lavadouro em tempos difíceis recebe, ainda, em média seis milhões de quilos de lã em sujo por ano.
No entanto, a resiliência do sector superou as dificuldades e na encosta da Serra da Estrela, em Tortosendo, perto da Covilhã, encontram-se empresas que conseguiram superar as crises e que, neste momento, estão a exportar quase a totalidade do têxtil que produzem. É o caso da Fitecom, fundada em 1993, e que consome cerca de duas mil toneladas de lã por ano, 25% proveniente de raças autóctones portuguesas.
No sentido de valorizar a fibra natural, Évora acolheu a Wool Conference 2024 no passado dia 2 de março onde, pela primeira vez em Portugal, foi possível juntar a fileira do sector laneiro. Nesta conferência, integrada nas XV Jornadas Internacionais do Hospital Veterinário Muralha de Évora e organizada pela Ancorme, estiveram presentes os produtores, a indústria, os empresários, os designers e as associações com o objetivo de delinearem uma estratégia concertada para a valorização desta matéria-prima natural e sustentável.
“Comprar um novelo de lã pode ser um pretexto para aprendermos mais sobre uma raça, uma região, tornando-se uma experiência enriquecedora do ponto de vista cultural” acrescenta Rosa Pomar referindo que as raças de ovelhas não se resumem a um património genético. A forma como os produtores lidam com as suas ovelhas, os queijos que fazem, as tradições que têm relacionadas com o maneio do gado variam entre a Serra da Estrela, Trás-os-Montes e o Alentejo e esta é uma expressão cultural única que enriquece o nosso património imaterial e que temos o dever de salvaguardar e de dar a conhecer. A lã das ovelhas do senhor António tem que deixar de ser um resíduo e voltar a renascer naquela camisola colorida que os nossos filhos querem comprar.