A Serra d’Ossa e o Convento de São Paulo foram para Hernâni Cidade, na sua meninice, “o que no planeta havia de notável, para além da vila de Redondo”, onde nasceu a 7 de fevereiro de 1887 e cujo “calor de ninho que a minha infância ali teve” não haveria de ser apagado pela passagem dos anos. “São mansas as suas lombas e sem despenhadeiros as suas encostas”, escreveria.
Professor, ensaísta, historiador e crítico literário, Hernâni Cidade morreu em Évora há 50 anos, a 2 de janeiro de 1975. Tinha 87 anos. Como habitualmente, havia passado o Natal na Pousada dos Lóios, na companhia de familiares, quando se sentiu mal, acabando por falecer no Hospital da Misericórdia. “É muito extensa a sua obra, por onde perpassa a sua cultura humanista, nos domínios da história, da investigação literária e da filologia”, escreveria o “Diário de Lisboa” a 3 de janeiro, numa notícia onde era sublinhada a circunstância de ter morrido “no Alentejo que o viu nascer”.
Filho de um abegão, António Bernardino Cidade, e de Genoveva da Purificação Madeira, moradores no Outeiro de São Pedro, foi batizado na Igreja Matriz de Redondo a 20 de fevereiro pelo padre Alexandre Manuel Pita, que grafou o seu nome como “Ernando”, o que seria corrigido 13 anos depois. Conforme escreveria a filha, Helena Cidade Moura, “foi ao som da orquestra da serra e do malho” que Hernâni aprendeu “a exatidão do trabalho, o valor do esforço, o sagrado cumprimento das tarefas”.
António Bernardino Cidade, “para além de artífice, cantava baladas e histórias, recitava versos de Augusto Gil, Guerra Junqueiro, António Nobre: à noite, ao serão, envolvia os filhos e os netos naquele universalismo alentejano, onde ressoava ainda a estepe, há pouco desaparecida”, acrescenta.
“As minhas recordações de infância são as de um rapaz de aldeia (…) Redondo não é bem uma aldeia, desculpe a minha terra se faço passar pela mente daqueles que me ouvem uma menor consideração aparente”, diria em fevereiro de 1958 numa entrevista à então Emissora Nacional. “De qualquer forma”, acrescentou, “tinha os hábitos de rapazinho de aldeia, que gostava de caçar lagartos e passear pelo campo”.
Por essa altura era já uma personalidade destacada no meio cultural português, à beira da jubilação pela Faculdade de Letras de Lisboa, feito comendador pelo Presidente da República, agraciado com a Legião de Honra da República Francesa e autor de uma vasta biografia, iniciada com a publicação, em 1929, de “Ensaio sobre a Crise Mental do Século XVIII”.
Na entrevista radiofónica, a Igrejas Caeiro, recordava essa infância fora de casa, “gozando o ar fresco dos campos” e as brincadeiras “com os rapazes” da minha laia. “De tal maneira que quando vou a Redondo e procuro os campos da minha terra ando em procura de mim mesmo, e assim me reconstituo”. Ainda que não o fizesse com a frequência que desejaria, não esqueceu amizades nem a Serra d’Ossa.
Na primária era, juntamente com outro rapaz, Caetano Pinhei- ro, “os mais pequeninos e os que mais aproveitavam”. De tal forma que o professor, encantado com o progresso dos miúdos, os convidou para irem a sua casa demonstrar a habilidade da leitura, “porque em pouco tempo tinha conseguido esse milagre da técnica pedagógica”, que era pôr os dois rapazes a ler.
“Era um professor improvisado e tinha um certo prazer em mostrar aos pais as aptidões com que realizava a sua missão”, confidenciou Hernâni Cidade, reconhecendo que os aplausos “foram fáceis”, tal a capacidade de leitura demonstrada. O pior foi a saída, num episódio que o haveria de marcar para a vida.
“Quando descemos as escadas e queríamos sair, porque éramos muito pequeninos, não chegávamos ao trinco da porta. Foi preciso que um de nós se pusesse em cima do outro para chegar ao trinco. Fui eu que subi. Nunca mais na minha vida subi à custa de quem quer que fosse. Só nessa altura é que, sobre as costas de alguém, pude atingir maior altura”.
Outra figura marcante da sua infância e adolescência foi a de um rapaz, um pouco mais velho, um “carpinteiro que abandonava o ofício para passar o dia a ler”. Hernâni Cidade, então aluno do Seminário de Évora, procurava-o quando, em período de férias, regressava a casa dos pais.
“[Ele] lia, estimulava-me à leitura e discutíamos os dois. [Era] um carpinteiro que poderia ser um grande poeta, um grande pintor, um grande contista, se porventu- ra as condições o favorecesses. Mas o pai tinha-o dirigido para a oficina de carpinteiro de um amigo e, por essas circunstâncias, é pelo Alentejo um homem que constrói e ornamenta teatros”, diz na entrevista à Emissora Nacional. “Uma boa parte dos livros que li nesse tempo foi ele que mos emprestou”.
Num texto biográfico publicado pelo Instituto Camões, Helena Cidade Moura recorda que o pai, “sem jeito para as artes do ferro, franzino demais para as tarefas do campo, dado mais às letras e à escola foi aceite no Seminário de Évora, onde se mostraria aluno brilhante, e onde sentiu, disse-mo várias vezes, a alegria enorme de uma grande fé”.

SERRA D’OSSA
Num texto datado de 1959, Hernâni Cidade evoca o seu fascínio pela Serra d’Ossa: “Aquela enorme, escura massa montanhosa era um misté- rio que atraía as curiosidades que em mim acordavam”.
Seria, no entanto, aos 18 anos, na sequência de uma “doença teimosamente prolongada que me teve nos arredores da tuberculose”, que se instalaria na Serra, “em busca da saúde que o aroma saudável dos pinheiros e o ar lavado da altitude, na verdade me restituíram”.
Foi também lá que regressou após ter regressado da I Guerra Mundial, num período “entregue à preparação para a atividade universitária” que iria iniciar. “Estou ligado por inquebráveis laços de saudosa lembrança à serra que foi para mim a primeira experiência, no permanente anseio de ultrapassar horizontes, que é a marca mais saliente da nossa espécie”, escreveu.