A realidade “cidade” aparece como o resultado da complexificação das estruturas sociais e humanas. Da família ao clã, do clã à tribo, da tribo à fundação da cidade. Nesta coexistem os indivíduos, livres, estratificados numa hierarquia de valores, de direitos e de deveres. É na cidade que acontece o exercício da lei e do poder (a ciência da polis, a política), é na cidade que acontece o exercício da religião e dos cultos… a cidade enquanto suporte físico da autoridade e da ordem.
A fundação de uma cidade era sempre um ato religioso, como resultado do facto de isso acontecer como consequência da união de diversas famílias sob o mesmo culto (autoridade) e sob o mesmo santuário.
Lembremos um ritual ancestral de fundação de uma cidade, nomeadamente dos antigos gregos, o qual os romanos imitariam posteriormente. Assim, o herói fundador da cidade teria de cavar um pequeno buraco circular e aí lançar um punhado de terra “sagrada”, terra de onde os seus antepassados estariam sepultados.
Da antiga Grécia a Roma e de Roma à Évora primeva. Conceitos e ideias a ter em conta: o circular, a sacralização do espaço (do caos ao cosmos), o ato volitivo e de poder. O arquétipo.
A fundação de uma cidade, neste caso Évora, data de tempos imemoriais, ofuscados pela lenda. Cidade erigida nos tempos míticos dos heróis e dos deuses. Tempos em que a cidade era vista como pátria… como a terra dos antepassados. Percebe-se que Évora foi local, ao longo dos tempos, de encontro e de encruzilhada de diferentes civilizações e culturas, saberes e sensibilidades.
UMA HISTÓRIA
Terá sido por altura dos primórdios do Renascimento eborense que eventualmente terão sido produzidas as cenas iconográficas das assim denominadas Casas Pintadas, mais concretamente do claustrim, cuja entrada se faria pela antiga Rua do Coudel-Mor (hoje Travessa das Casas Pintadas). É interessante referir que as pinturas que deram origem ao topónimo Rua das Casas Pintadas (hoje Rua de Vasco da Gama), e que se poderiam ver na fachada do prédio, já nos finais do século XIX eram memória, segundo nos referiu Felipe Simões, que já não as viu in loco.
Há uns tempos, estando eu numa das frequentes visitas àquele local mágico, apreciando mais uma vez as pinturas e a capela, o jardim, o ar que se respira, o silêncio, a paz, aparece uma outra visita. Era um senhor de uma certa idade, já avançada, de rosto e postura nobre, mas de uma simplicidade a toda a prova, que constatei quando me dirigiu a palavra e estivemos um bom bocado a conversar sobre aquele tesouro que se desocultava perante nós. [Nota da redação: a galeria das Casas Pintadas está classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1950 sendo as suas decorações consideradas um exemplar único da pintura mural palaciana da primeira metade do século XVI].
Sabe – disse-me ele –, para a fundação de Évora criou-se um mundus onde a terra dos antepassados dos fundadores ficou depositada, o que por sua vez transformou a Évora-em-devir num espaço sacralizado. Nesse mundus ficaram igualmente concentradas todas as forças anímicas, benéficas e maléficas, que são parte constituinte daqueles fundadores míticos – materializadas e manifestadas nos seus desejos mais íntimos, nas suas aspirações mais profundas, nas suas crenças e mais sinceras convicções, na sua força interior, para o bem e para o mal.
Com o decorrer dos séculos – continuou a intrigante personagem – aquele espaço sagrado de criação e de construção foi profanado e do mundus libertaram-se forças poderosas e terríveis. A acrópole continuou a receber e a assumir os espaços sagrados e sacralizados das diferentes religiões – pagãos naturalistas, deístas, muçulmanos e finalmente cristãos – e todas privilegiaram aquele espaço. Até aos nossos dias chegaram-nos o Templo Romano profanado, mas também a extraordinária obra dos construtores medievos, que é a Catedral de Santa Maria.
Contudo, com as forças e energias, anteriormente concentradas no mundus, libertas e em livre movimentação pela cidade, os hierofantes cristãos conseguiram dominar e fixar pictoricamente estas energias elementais num pequeno claustro, que nos séculos XV e XVI foi património dos coudéis-mor e capitães da cidade de Évora, da família Silveira-Henriques, cujo brasão ainda podemos observar num fecho de abóbada existente na capela anexa ao claustrim. Visão extraordinária a daqueles bestiários cristalizados no local – desde a hidra a monstros alados, até ao bestiário tradicional do Alentejo.
DESCOBRIR ÉVORA
Évora, repertório inesgotável dos nossos melhores poemas de granito e mármore. Diz-nos Teixeira de Pascoaes que se sente Évora como a “catedral do silêncio”, cheia de misteriosa comoção, a cidade mais bela para os olhos, que se extasiam nos passados longínquos e ao mesmo tempo sempre presentes. Se há alguma cidade que nos remete continuamente para o mito do eterno presente, onde o sagrado e o profano se amalgamam num equilíbrio estético e telúrico, uma dessas cidades será certamente Évora.
Aqui a história está viva. E para compreendermos verdadeiramente a cidade e a sua história, de que fazemos parte, olhemos Évora através de diferentes enfoques, de diferentes abordagens, quiçá distintas, mas muito complementares. Uma dessas abordagens é a poética. Só a poesia entra em esferas inatingíveis para os estados normais e normalizados de vigília (ou adormecimento?). Só a poesia é detentora de uma linguagem que permite uma comunicação com o todo e com o uno, e Évora é essa totalidade que nos envolve, que nos penetra nos nossos poros, que nos alimenta como uma mãe – como a tellus mater.
Outra abordagem possível será a analógica. Talvez porque só analogicamente, só pesando no nosso mais íntimo ser realidades diferentes, possamos ter consciência de todo o processo histórico, mítico e humano da cidade através dos séculos. Tal como nós, também Évora vive, respira, se alimenta e precisa de sol e ar e água e luz.
Uma outra abordagem será a imaginária. A imaginação criadora realiza milagres, pequeninos milagres (haverá outros?) tais como: o desabrochar do botão de uma rosa, o sorrir de uma criança que se debruça e nos espreita… a água no profundo poço que nos devolve a nossa imagem, a sombra e as contra-sombras num claustro esquecido, um grito, uma palavra… a vida e o seu mistério.
Agarremos então nestas (e porque não noutras que possamos inventar?) três ferramentas da observação e partamos em demanda da cidade. Veremos que talvez se entreabra a porta do coração, do nosso coração, para a sentir, para a olhar, para a ver.
É uma aventura redescobrir Évora, pelas suas ruas, praças, largos, recantos, fontes, pátios, passeios, jardins, enfim um nunca mais acabar de sítios com ambiências peculiares e que nos sussurram ao ouvido interior e que nos convidam para uma peregrinação.
CASAS PINTADAS
As Casas Pintadas devem o seu nome ao singular conjunto de frescos quinhentistas que decora a galeria e o oratório anexo integrados no jardim. À época da execução dos frescos, o edifício pertencia a D. Francisco da Silveira, terceiro coudel-mor de D. Manuel I e de D. João III e um poeta de referência no “Cancioneiro Geral”. Em finais do século XVI, lembra a Fundação Eugénio de Almeida, foram anexadas ao Palácio da Inquisição para servir de moradia aos juízes do Santo Ofício.