Um dicionário para descobrir Florbela, escrito por 80 académicos de vários países

São 187 verbetes, escritos ao longo de mais de 800 páginas por 80 académicos de seis países. O “Dicionário de Florbela Espanca”, o primeiro dedicado a uma escritora portuguesa, foi recentemente publicado. É uma obra fundamental para conhecer o trajeto pessoal e literário da poetisa.Luís Godinho (texto)

É Maria Lúcia Dal Farra, autora de oito obras sobre Florbela Espanca, quem o conta, situando o episódio na Rua Josefa d’Óbidos (Lisboa), nas vésperas do dia 8 de dezembro de 1923, dia do aniversário da escritora. “Consta”, escreve, que nesse dia Florbela “teria preparado o prato predileto do marido, ovos escalfados”. Não só cozinhou, como também terá posto a mesa, “talvez com uma das toalhas que ela refere na correspondência e que, como Penélope, se pusera a bordar na espera do retorno” do marido, António Guimarães, militar da GNR.

Por razões desconhecidas, mas que Maria Lúcia dal Farra diz ser adivinháveis, “por alguma banal discussão ali encetada”, António Guimarães “acaba por puxar a toalha de mesa e derrubar no chão o jantar que tão cordialmente ela lhe dedicara”. E consta também que, nessa altura, “aturdida e de repente lúcida diante dessa cena”, Florbela Espanca “teria se levantado num ímpeto, pego o mantô, a bolsa, o guarda-chuva e o chapéu, teria partido de casa e da vida de Guimarães para sempre – e heroicamente”.

Estava consumado a separação, a que se seguiria o divórcio, dois anos depois, sem que a escritora tenha alguma vez retornado a casa, “nem mesmo para buscar os poemas inéditos e inaugurais, seus guardados e lembranças pessoais, que com Guimarães permaneceram até à morte dele”.

O episódio consta do verbete dedicado a António Guimarães, um dos 187 que constituem o “Dicionário de Florbela Espanca”, o primeiro de uma escritora portuguesa, mais de 800 páginas escritas por dezenas de académicos de seis países, com coordenação de Jonas Leite e de Fábio Mário da Silva, professores da Universidade de Pernambuco, e direção científica da própria Maria Lúcia dal Farra, autora de seis obras sobre a escritora alentejana.

Este volume, explicam os autores, “é uma tentativa de apreender e didatizar o vasto universo florbeliano”, aqui se reunindo “temas, pessoas, cidades, livros, críticos, motivos, estilos de época, tendências estéticas, etc., enfim, uma miríade de assuntos que orbitam neste espaço in progress imenso da vida e da obra da poetisa portuguesa”.

O casamento de Florbela Espanca com António Guimarães, o seu segundo marido, descrito por dal Farra como sendo um “rapaz bem apessoado, louro de olhos claros”, já vimos que acabou em divórcio. Como em divórcio tinha acabado a sua relação com o primeiro marido, Alberto Moutinho, natural de Évora, com quem casou aos 19 anos tendo ido viver para a vila de Redondo. Dois anos depois de se separar de Guimarães, Florbela voltou a casar, com Mário Pereira Lage, sendo que todos estes aspetos da sua vida privada eram acompanhados e comentados em Vila Viçosa, terra onde nasceu a 8 de dezembro de 1894.

“Vila Viçosa”, escreve Noémia Serrano, professora e historiadora, “nunca esteve indiferente à vida de Florbela e acompanhou, por vezes dura e criticamente, a história da sua vida, os seus amo- res e desamores, os seus casamentos e as suas separações”. Talvez fosse inevitável numa vila do interior alentejano há mais de 100 anos. É nessa data (1924), quando já vivia com Mário Lage, o seu terceiro marido, que lhe é atribuída uma medalha pela Cruz Vermelha como recompensa pelo seu trabalho na angariação de fundos, e que hoje se encontra à guarda do Grupo Amigos de Vila Viçosa.

“Estas acontecimentos comentados por todos e reprovados por muitos, estabelecem a imagem de uma mulher à frente do seu tempo, incompreendida mas disposta a viver intensamente, sem obedecer às normas restritas da sociedade portuguesa dos anos 20”, anota ainda Noémia Serrano, num verbete onde também se debruça sobre a infância da poetisa, batizada com o nome de Flor Bella Lobo, pois nasceu “fora do casamento do seu pai”.

João Maria Espanca só reconheceria Florbela como sua filha legítima “18 anos após” o suicídio da poetisa, na mesma data em que também perfilhou Apeles Espanca, alegando que apesar de terem sido declarados como “filhos de pai incógnito”, sempre havia assumido “os [seus] deveres e responsabilidades”. A mãe, Antónia da Conceição Lobo, era “criada de servir no número 45 da Rua da Corredora, hoje Rua Florbela Espanca, na casa de Diogo Borba, chefe dos correios calipolenses”, perto da residência João Maria Espanca.

Foi em casa do pai e da madrasta que a poetisa viveu os primeiros anos de vida. “Na casa de seu pai, segundo as suas palavras, teve uma infância feliz, vivendo com a família Espanca no número 59 da atual Rua Florbela Espanca, onde existe hoje uma placa a assinalar esse facto, produzida e afixada pelo Grupo Amigos de Vila Viçosa”, regista Noémia Serrano.

“DICIONÁRIO DE FLORBELA ESPANCA”

Coordenação de Jonas Leite e Fábio Mário Silva 

Edições Esgotadas, 840 páginas, 50,00 euros

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