Foi um dos “dinossauros” do Poder Local. Eleito presidente da Câmara de Reguengos de Monsaraz nas primeiras autárquicas (1976), seria sucessivamente reeleito, permanecendo no cargo durante 33 anos. Até que a limitação de mandatos, entretanto introduzida na legislação autárquica, o impediu de ir a votos. Victor Martelo publica agora em livro as suas memórias, numa edição que conta com o apoio do Município local e que será apresentada dia 25 de abril, pelas 16h00, no Salão Nobre dos Paços do Concelho.
Ao longo do livro, o ex-autarca recorda momentos importantes na história do concelho, das visitas presidenciais de Ramalho Eanes, Mário Soares, um “camarada e amigo”, Jorge Sampaio e Cavaco Silva, dos momentos pré e pós-Revolução de Abril às primeiras eleições autárquicas, dos seus tempos de infância e juventude aos projetos executados ao longo de nove mandatos, da criação de infraestruturas básicas de abastecimento de água e de saneamento à elevação de Reguengos de Monsaraz a cidade.
“Esta ideia de transpor para o papel as minhas memórias demorou bastante tempo a amadurecer”, escreve o autor numa nota introdutória, onde recorda ter iniciado a sua vida política autárquicas depois do 25 de Abril, “fruto da minha luta pela verdade, do trabalho incansável, da perseverança, de tudo o que passei ao longo dos anos e do amor que sempre tive pela minha terra”.
Nascido a 1 de setembro de 1933, “numa casa de primeiro andar, apenas com dois compartimentos e sem quaisquer condições”, Victor Martelo deixa neste livro um registo expressivo de como era a vida das famílias humildes no Alentejo de há 90 anos, por contraste com a forma como “viviam os grandes e opulentos agricultores”. Feita a escola primária com a severidade característica de uma disciplina mantida à palmatória – “fiquei com as mãos inchadas e vermelhas, sem poder mexer os dedos” – e sem que a família tivesse possibilidades de financeiras para “voos” mais elevados, conclui o curso elementar de comércio, antes de iniciar a sua vida profissional.
Ponderou ser alfaiate, a profissão do tio e do pai, acabou a trabalhar na drogaria de Orlando Ferro, situada na Praça, estabelecimento que conhecia bem pois fora ali que aprendera a escrever à máquina, condição obviamente indispensável para passar na disciplina de datilografia. Daí passou para escriturário na firma Rosa & Rosado, Loja dos Rapazes, dedicando-se à “escrita” de empresas locais, incluindo a Caixa Agrícola, onde trabalho durante vários anos.
Sobre a sua entrada na vida autárquica, recorda um célebre dia em que para “fugir” ao convite que sabia que lhe iria ser feito pela dirigente socialista Ivone Carmona acabou a ver um jogo do Atlético de Reguengos dentro de um carro. Horas depois, “apanhado” em casa, lá acabaria por aceitar a candidatura à Câmara, com a qual haveria de iniciar o seu percurso político.
Da sua passagem de mais de três décadas pela autarquia, recorda diversos momentos, de obras “controversas” como as piscinas ou o auditório municipal, a episódios que hoje parecem “caricatos”, como daquela vez em que um grupo de pessoas invadiu os Paços do Concelho obrigando a uma suspensão temporária da reunião de Câmara. Do fim do ramal de Reguengos e das contrapartidas então negociadas com o então ministro do Equipamento Social, Rosado Correia, faz-se todo um capítulo, à semelhança de um outro, o último, onde conta sobre a sua recusa em deixar Reguengos de Monsaraz para assumir o lugar de deputado.
“Este é um tempo em que dar voz e homenagear pessoas como o Victor Martelo é mais importante do que nunca”, escreve no prefácio o eurodeputado Carlos Zorrinho. “A rua já não é como era. Muito do que vemos e testemunhamos passa-se nas redes sociais. Uma grande nuvem de esquecimento ameaça a triste memória da ditadura e normaliza quem a volta a defender”, sublinha Carlos Zorrinho, segundo o qual “a memória dos que antes de nós nos outorgaram a liberdade de ser e de estar, exigem que não desistamos da batalha nem hesitemos naquelas que devem ser as nossas prioridades progressistas e humanistas”.
Daí que, conclui o eurodeputado, “hoje, ainda mais do que ontem, o Victor [Martelo], com o seu exemplo de vida, que estas memórias retratam, é uma luz e um alerta sempre presente”, uma “referência” para a região e para o país, bem como “para todos os que com ele tiveram e têm a oportunidade de trabalhar e aprender”.