Volta a nascer o Menino no retábulo dos Bonecos de Santo Aleixo

Até 21 de dezembro a Biblioteca Púbica de Évora recebe o "Auto do Nascimento do Menino Jesus", pelos Bonecos de Santo Aleixo. Maria Luísa Ferrão (texto)

Nasceram da alma do trabalhador rural que, após terminar as colheitas de verão, dedicava a vida a construir os bonecos e a história que os animava, mimetizando as personagens polémicas da aldeia. Num misto de sátira e contestação, os bonecos, que remontam ao século XVIII, traziam para o pequeno palco temas sérios e marotos que à época não passavam de sussurros nas esquinas e nas tabernas da aldeia. Continuam bem vivos, nas mãos dos atores do Centro Dramático de Évora (Cendrev), que assumiram a responsabilidade de manter este espólio que já correu mundo e que fez nascer em Évora a Bienal de Marionetas que terá a sua 17.ª edição em junho de 2025.

As primeiras referências aos Bonecos de Santo Aleixo remontam a 1780 e foram escritas por um padre de Vila Viçosa, chamado Joaquim Manuel Espanca, segundo o qual os bonecos teriam sido queimados num Auto de Fé por causa do padre Chancas que fazia o que não devia, como dançar com as primas ou dizer coisas que não se esperavam de um clérigo.

José Russo, ator do Cendrev e um dos fiéis depositários deste espólio, refere que posteriormente, já no século XIX, os Bonecos de Santo Aleixo aparecem associados a um senhor Nepomuceno, muito culto e conhecedor das histórias bíblicas, que vivia na aldeia de Santo Aleixo no concelho de Monforte. Rezam os ditos populares que este Nepomuceno terá assassinado um outro homem residente naquela aldeia e que terá fugido para se livrar da justiça, tendo ido viver para São Romão, um pouco mais a sul, já no concelho de Vila Viçosa.

Aí terá criado, ou recriado estas marionetas, a partir de espetáculos que já teria visto a circular na Península Ibérica como as companhias dos Presépios Portugueses. “Parece que o senhor Nepomuceno conhecia muito bem as histórias religiosas e transfere-as para os Bonecos”, refere José Russo, lembrando que esta questão das tradições nunca se sabe bem onde começa. Até porque ao longo de gerações os homens vão acrescentando coisas.

“Quando chegaram a nós, estas histórias não estavam escritas em lado nenhum. Viviam na cabeça do mestre Talhinhas, a terceira geração que tomou conta dos Bonecos e que nos passou o legado nos anos 80”, acrescenta o ator que dá vida ao Mestre Salas, uma das marionetas mais atrevidas. Entre Talhinhas e Nepomuceno, os Bonecos estiveram nas mãos de Manuel Jaleca, calceteiro na Câmara de Estremoz, tocador de guitarra e mestre na afinação, casado com uma bisneta de Nepomuceno que herdou o “estojo” por via do casamento. Jaleca terá ido convencer o mestre Talhinhas, residente em Santiago de Rio de Moinhos, trabalhador rural e poeta popular, notável a trabalhar como bonecreiro, animando o Mestre Salas e acompanhando-o nas digressões.

“O Mestre Talhinhas tinha um talento enorme e uma memória extraordinária. Mobilizou toda a família para trabalhar com as marionetas. Bastava darem-lhe o mote e, a partir de quatro versos, ele construía uma décima. Ao repertório herdado introduziu novas peças, como foi o caso do Baile das Leiteirinhas, em que a letra da cantiga se refere à Serra da Estrela e lhe foi trazida por um padre que foi viver para a aldeia”, diz o ator.

Também os animais que entram originalmente no presépio, feitos de madeira e cortiça, cujos pés eram terminados com madeira de oliveira mais rija para provocarem aquele som muito característico do bater dos bonecos sobre o retábulo, começaram a ser esculpidos em baquelite, uma resina sintética porque naturalmente seria um material mais fácil de trabalhar.

Sendo um espetáculo intimista exige uma sala completamente escura daí, antigamente, ser feito sempre à noite. Isto porque a iluminação resumia-se a uma candeia de azeite e a algumas velas, cenário que permanece. “Quando era feito de forma tradicional havia duas partes. A parte séria que, normalmente, era um Auto ao qual as crianças assistiam com as mães e com as avós. E depois chegavam os homens para a segunda parte, mais profana, onde se viam os bailinhos, as saiadas, as confissões, os sermões, os fadinhos cantados à disputa”, acrescenta José Russo referindo que a dimensão religiosa, mesmo dentro dos autos, era sempre um pouco cortada porque havia intervenções de personagens que não faziam parte da história sagrada.

“Isso descompunha um pouco aquela ideia certinha, por exemplo, da criação dos animais no antigo testamento. Nós fazemos essa parte no “Auto da Criação do Mundo”, mas depois, quem aparece lá atrás dos animais é o Mestre Salas. Este é o apresentador do espetáculo, uma figura que acompanha tudo do princípio ao fim, vai fazendo comentários e provoca o público. Há um conjunto de contactos e de brincadeiras para envolver o público”, acrescenta o ator do Cendrev, referindo que se trata de um espetáculo muito empático.

Embora hoje não seja tão frequente como antigamente, as pessoas reconheciam-se naquelas personagens, uma característica clara do teatro popular. As histórias são universais, embora com marca alentejana, e aqui falamos da “Auto da Criação do Mundo” que começa com a criação do sol e da lua, ou seja, o contraste entre a luz e o escuro, evocando o que se faz às claras e às escuras.

Depois há o “Auto do Nascimento do Menino Jesus” com as figuras do presépio, o “Auto da Paixão”, mais descritivo e que vive mais do cenário, onde se relatam os martírios do Senhor, com o fel e a esponja que limpa. A acrescentar a este repertório aparece um conjunto de peças, chamadas de segunda parte, que se referem ao fado do Paulo da Fonseca e à menina Virgininha que são as saiadas, o baile dos cágados, o baile das leiteirinhas, a confissão do Mestre Salas, a confissão da Beata, o Lará, o Paço do Barbeiro. “Se fizéssemos de seguida o que nos foi passado precisaríamos de quatro horas e meia de espetáculo”, diz o ator, sublinhando que as peças são apresentadas em função da época do ano.

Já nos anos 60, as marionetas de varão, manipuladas a partir de cima, correram o país pelas mãos do mestre Talhinhas, que ainda fez alguns espetáculos em Lisboa, na Casa da Comédia, em Coimbra e no Porto com o apoio da Gulbenkian. No entanto, no início da década de 70, o mestre deixou de conseguir fazer o espetáculo porque as filhas foram à vida delas e começaram a faltar pessoas para trabalhar embora ele nunca tivesse desistido de mobilizar alguns dos seus conterrâneos.

Também começou a envelhecer e houve um grupo de pessoas ligadas à cultura que lhe propuseram comprar o espólio. Até já corriam notícias de que os bonecos iriam ser comprados por colecionadores particulares o que retirava este património da esfera pública. Aí a Assembleia Distrital de Évora, presidida na altura pelo governador civil, comprou o espólio por setecentos contos e os bonecos vieram viver para o Teatro Garcia de Resende ficando o grupo de atores do Cendrev responsável pela sua animação.

“Em 1980, o mestre Talhinhas veio a Évora fazer um curso com os alunos da Escola de Formação Teatral que funcionava aqui no Garcia de Resende. Depois os alunos começaram a fazer o espetáculo. Os atores da companhia, entre eles eu, pegaram no trabalho, por sugestão do diretor Mário Barradas, e começámos também a fazer os espetáculos dos bonecos. Passou por termos de fazer ensaios, trabalhámos em grande proximidade com o Mestre durante uns anos e, é claro que depois aconteceu muita coisa porque os bonecos de Santo Aleixo são um espólio europeu, diria mesmo, mundial”, partilha José Russo, que refere a importância de os bonecos terem passado a ir a festivais de Marionetas pelo mundo inteiro ganhando visibilidade e despertando a curiosidade dos investigadores que passaram a integrá-los no panorama da marioneta mundial.

Quem vê o espetáculo percebe as várias dimensões que ele tem. É um apelo aos sentidos. “Nós próprios somos surpreendidos com a reação do público quando estamos fora. Porque não é só aquilo que se diz e o que se ouve, mas a quantidade de marionetas que aparecem, a circunstância de se apresentarem num pequeno palco à italiana, o tal retábulo, com aquela luz da candeia de azeite, as velas acesas”.

“Por exemplo”, afirma, o “Baile dos Anjinhos” é “feito com velas acesas que estão na mão do anjo, utilizando uma série de efeitos especiais, uns pequenos foguetes que produzem um efeito espantoso com a resina do pinheiro transformada em pó que, quando atirado sobre a chama da candeia, incendeia de repente e logo desaparece. Fica o cheiro da resina. Ouve-se uma guitarra a tocar ao vivo, as vozes não são amplificadas”.

José Russo diz que quando a companhia leva o espetáculo para outros países “geralmente” conta o “Auto da Criação do Mundo”. “É uma história universal e as pessoas percebem o que está a ser feito, a tentação de Adão e Eva pela serpente. Conseguem vibrar com o espetáculo”, acrescenta o autor, referindo-se à presença do improviso que faz com que cada espetáculo seja sempre diferente.

“Há uma estrutura e um texto a seguir, mas dentro disso, há espaço para momentos de relação com o público. Por outro lado, nos bastidores acontece um espetáculo paralelo, entre os atores que manipulam as marionetas. Somos espectadores de nós próprios, não vemos na mesma condição do público, mas isso não significa que não sejamos surpreendidos pelos próprios colegas, lá atrás também há surpresas!” remata o mestre Salas que tem tanto de José Russo como do Mestre Talhinhas.

No âmbito da iniciativa Évora Capital Europeia da Cultura em 2027 está prevista a criação da Casa dos Bonecos onde se possa guardar publicamente todo o espólio de Santo Aleixo que espelham um universo cultural muito próprio deste território mais rural que se estende pelo Alentejo.

Partilhar artigo:

ASSINE AQUI A SUA REVISTA

Opinião

PUBLICIDADE

© 2024 Alentejo Ilustrado. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por WebTech.

Assinar revista

Apoie o jornalismo independente. Assine a Alentejo Ilustrado durante um ano, por 30,00 euros (IVA e portes incluídos)

Pesquisar artigo

Procurar