“Volta para a Tua Terra”. O grito de Keli Freitas contra a xenofobia e o racismo

Onde fica a “minha” terra? E a “tua” terra, onde é? Quem ou o quê tem o poder de definir onde é a terra de alguém? É a partir de interrogações como estas que Keli Freitas constrói “Volta para a Tua Terra”, peça com antestreia marcada para o próximo dia 1 de junho, pelas 21h30, na Blackbox de O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo. Luís Godinho (texto)e Inês Sambas (fotografia)

“Volta para a Tua Terra”, revela Keli Freitas, começou a ser pensada “num dia muito específico”. Foi quando o pai se lembrou de lhe contar que a bisavó, “mãe do meu avô Newton”, era portuguesa. Talvez por ter chegado há pouco a Portugal, a conversa foi em 2017, Keli interessou-se pelo assunto, pediu os documentos da bisavó Virgínia e encontrou apenas dois: a certidão de casamento e a de óbito. “Só tinha dois documentos da sua vida inteira”. Então, começou a procurar. “Começo a querer dar à minha bisavó a sua certidão de nascimento”. Desse percurso, ainda não o saberia na altura, resultou a sua nova criação artística.

“O meu nome é Kelly de Mendonça Freitas. De Mendonça é o nome dela, que foi para o Brasil com apenas 15 anos e casa-se com João Câncio de Mendonça, meu bisavô pernambucano. Então, essa senhora nascida em Torres Vedras casa-se no Rio de Janeiro com um pernambucano, quer dizer, a vida é muito feita de misturas, de movimentos migratórios, de deslocações”, diz Keli Freitas, que não por acaso gosta de citar o poeta e diplomata Guimarães Rosa: “liberdade é movimentação”. De resto, “talvez a árvore genealógica de cada pessoa fale um pouco sobre isso”.

O passo seguinte foi procurar nos arquivos, acabando por encontrar na Torre do Tombo o tal documento a atestar a filiação, data e local de nascimento da bisavó. “Foi um dia muito emocionante. Encontrei a certidão dela e comecei a relacionar esse fato com um trabalho anterior que eu já tinha feito em 2016, pois tenho muito essa coisa da pesquisa com documentos reais”.

Na verdade, além de dramaturga (autora de “BAqUE”, de Gaya de Medeiros, ou “Es tr3s irms”, de Tita Maravilha), criadora e atriz, Keli Freitas é igualmente colecionadora de correspondência de pessoas anónimas, a partir da qual desenvolve trabalhos autorais.

“Compro nas feiras de antiguidades, nas feiras da Ladra, a correspondência de pessoas anónimas. E leio. No começo foram anos e anos só lendo e pensando, meu Deus, quero fazer alguma coisa com isso. Então, desde 2013 que faço trabalhos a partir dessas correspondências”. O primeiro foi um projeto chamado “Carimbaria”, no qual produz artesanalmente carimbos com frases encontradas nesse trabalho de pesquisa, e que pode ser visto no Instagram (@carimbaria).  “Emociona-me muito a escrita das pessoas anónimas, a escrita produzida sem intenção de publicação, a escrita utilitária do dia a dia. É incrível pensar que a escrita permeia a vida de todos nós, não escritores, não escritoras”. Foi também aqui que encontrou elementos para a dissertação de mestrado, acabada de entregar, e onde questiona o que é uma autora e reflete sobre autoras que “não são mulheres publicadas, que anotavam as suas vidas”.

“Volta para a Tua Terra” é, assim, uma viagem a Torres Vedras no dia do aniversário de 120 anos da sua bisavó Virgínia. “No dia 6 de novembro de 2020 fui a Torres Vedras comemorar o aniversário dela, tenho registos desse dia e, a partir daí, comecei a pensar seriamente em tratar esse material para fazer um espetáculo”, sublinha Keli Freitas, que só agora conseguiu viabilizar o projeto graças à bolsa de criação do Projeto Casa, iniciativa promovida por O Espaço do Tempo, A Oficina, e pelo Cineteatro Louletano. “Então peguei em todo esse material que vinha reunindo e criei um espetáculo em torno desse gesto em direção à minha bisavó portuguesa”.

O nome da peça, refere, “é uma frase horrorosa que, infelizmente, talvez todo o brasileiro e toda a brasileira já tenha ouvido como imigrante em Portugal… nem preciso dizer que sabemos que a extrema-direita elegeu 50 deputados no ano que em que o 25 de Abril faz 50 anos, e que a xenofobia contra brasileiros cresceu exponencialmente”. Este seu trabalho é também uma forma de “questionar essa frase, que é criminosa”, muitas vezes acompanhada de outras, como a existência de autorização para entrar, para trabalhar, para permanecer.

“A minha bisavó”, recorda Keli Freitas, “era portuguesa, mas viveu a sua vida inteira no Brasil, eu estou vivendo uma parte significativa da minha vida adulta em Portugal. Ela faleceu antes de eu nascer, mas tenho o seu nome até hoje. São coisas que você vive no corpo, não tem como não se envolver… não tem como”. 

“VOLTA PARA A TUA TERRA” 

Texto e Direção: Keli Freitas | Interpretação: Ana Gigi e Keli Freitas | Apoio à criação: Atena Barbosa | Apoio à Dramaturgia e Direção Musical: Mariana Ricardo | Cenografia e Figurinos: Elsa Romero & Manu Curtis | Desenho de Luz: Ariene Godoy | Direção de Produção: Sofia Estriga | Produção: Além Mundus – Ass. Cultural | Residência de Coprodução: O Espaço do Tempo e A Oficina | Coprodução: O Espaço do Tempo, A Oficina e Cineteatro Louletano, no âmbito do Projecto CASA

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