Zé Det e o fulgor de quem desafiou a ordem estabelecida

Aos 76 anos, Zé Det continua a falar com o fulgor dos dias em que desafiou a ordem estabelecida. Cresceu no Vimieiro, entre a dureza da terra e a consciência precoce das injustiças sociais, e fez-se homem na luta clandestina contra a ditadura, alinhado com Palma Inácio e a LUAR. Carlos Leitão (texto e fotografia)

A aspereza esconde-lhe a gargalhada nos calos varonis, e brilham os olhos quando se fala nos sonhos de uma vida. Este alentejano conta os 76 anos de idade pelos dedos que batem compassos ternários na mesa da sua casa, onde há discos e livros eternos, e a sensação clandestina de quem esconde segredos de que não abre mão. Zé Det não quer dizer o nome real, fica, pois, a alcunha que lhe conheci há anos.

Nasceu no Vimieiro, e cedo a consciência política lhe deu o mote: “O meu pai tinha uma loja, casou três vezes, foi uma das poucas pessoas enterradas sem padre, estava banido. Eu ia para a porta e via homens na praça, encosta- dos à parede, à espera dos manajeiros que os vinham escolher para trabalhar. Os latifundiários não apareciam. Os que refilassem tinham problemas”.

Det é abreviatura de detergente, dada a tez muito branca e o cabelo arruivado da meninice; nasceu em 1948, aquando da criação do Estado de Israel, assunto que, ainda por nos sentarmos, logo o alvoraça: “Israel está a vingar-se para que uma faixa de terreno do tamanho do distrito de Beja deixe o mundo inteiro de rastos. Já vimos isto, só que eles eram protagonistas e vítimas. Querem pôr em prática toda a mitologia da terra sagrada e do paraíso, sob o pretexto da proteção divina. Gaza, parte da Jordânia e do Líbano, Cisjordânia, esse é o sonho imperialista dos descendentes do Sião. Mas a terra chama-se Palestina, não se chama Judiaria”.

A entrada no liceu em Évora é o tirocínio da sua luta política: “Aos 16 anos já andava tudo em polvorosa, já havia desertores em Évora, já recebíamos notícias e discos de Paris sobre as grandes novidades”. Daí à têmpera revoltosa da adolescência, foi o caminho irreversível. A vida agita-se, mas ainda tem tempo para cantar a ópera “Oh mia Patria bella e perduta”, de Verdi. “Dava para estar ao pé das moças”. A tensão aumentava: “Évora era o centro dos latifundiários. À terça-feira juntavam-se no Café Arcada a fazer os seus negócios, precisavam de ter a segurança de que nada se passava nas suas terras, ou seja, o Alentejo todo”.

A vontade de mudança leva-o a agir, mas a pressão policial torna-o num alvo, e acaba por partir: “A PIDE em Évora foi das piores. O chefe andava todo o dia a cocar de Volkswagen. Saio de Évora para a Força Aérea, estava à beira de ser preso. Ali a PIDE não podia entrar. Nessa altura já tinha colaborado com gente que teve a ver com o assalto às armas do quartel da GNR. Estamos a falar da Liga de Unidade e Ação Revolucionária (LUAR). As coisas começaram a apertar”.

Em Lisboa pulsam os batimentos cada vez mais alinhados do que havia de concretizar-se na primavera de 1974: “A gente fazia tudo clandestinamente, um sigilo muito grande, os contactos eram todos boca a boca”. Os olhos brilham mais quando se viaja até aqui, e lamenta o facto de já terem morrido quase todos os que ousaram sonhar.

Zé Det seria o mais novo de um grupo liderado por Palma Inácio: “Em 1973 foi tudo preso em Lisboa, na Avenida 5 de Outubro, 20 e tal gajos que saem logo depois em 1974. O Palma Inácio era um aventureiro romântico. Queres coisa melhor do que o assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz? Estava uma avioneta à espera, mas o dinheiro, os sacos e os passageiros eram tantos que tinha dificuldades em descolar. Pensaram em atirar o dinheiro para o chão, mas aquilo lá levantou”.

Zé não fez parte desse assalto, mas quando lhe peço para contar uma história em que interveio, a resposta é sorrida e pronta: “Isso é para romances”.

Representava-se a ideia do poder popular na virgem noção que demoraria a entender-se, alguns haveriam de integrar as FP-25, mas a realidade não deixou margem de manobra: “A questão era a orgânica, o dirigismo, a partidarização, a LUAR era uma coisa romântica, o Zeca era o maior propagandista que a gente tinha; as raparigas gostavam e faziam parte, também era bom por isso (risos). Faltou não termos um povo com 60 ou 70% de analfabetismo, e não falo apenas do gajo que sabe escrever mal o nome. Quando se abordavam temas políticos as pessoas diziam 1epá, isso é política, não quero saber disso para nada!’, e hoje já se diz a mesma coisa”.

Zé Det foi para Moçambique em 1977 e lá nasceram os seus dois filhos, voltou por questões educacionais da sua filha, mas a ida para África é uma espinha atravessada na garganta que ainda o enfurece… a Lei Portas e a Lei Barreto: “Estabelece que os centros regionais de Reforma Agrária têm de proceder à entrega de 70 mil pontos aos ex-latifundiários expropriados por conta do Estado. Eu disse não e fui-me embora”.

A idade não o amolece, e o pavio anda curto para as portas que abrimos com cuidado, como a actualidade: “Pagaram o silêncio para deixarem de pensar e encherem o cu aos ricos. Eles, e os que se tornaram ricos, fizeram dos seus filhos quadros de qualidade, colocaram bem as pedras em tudo o que é poder de decisão”.

Não preciso de o convencer a fazer a ponte para o fenómeno da extrema-direita. A aceitação social provoca-lhe pena. “Tenho pena de viver no meio desta gente que ainda não percebeu que lhe montaram a armadilha, e todos caíram nela. O gajo da esquerda que vota no Ventura é por desgosto, não é por crença. Deixaste de contar, vives do subvencionismo, ou portas-te bem ou levas tautau. Nem Beja escapou, e Beja era o bastião! Os que pensam por sua conta são um perigo. Ainda os há, mas se extravasam aquele limite… rua. Não és obediente, és mau trabalhador”.

A parte final da conversa começa com um grito do nosso convidado: “Cuidado com o Fernando Pessoa!” porque recorri ao escritor para saber se ainda falta cumprir-se Portugal. Det adverte para a promiscuidade de Pessoa com o Integralismo Lusitano. Continuemos. Como se considera politicamente? – “Honesto. O Homem é revolucionário porque tem relação com as coisas, e isso significa que a tendência é melhorar. Quando não se lhe proporciona esse caminho, torna-se revolucionário. Basta ser honesto”.

Pedimos-lhe, então, que concluísse a frase “um dia o povo português…” e a resposta surge: “vai acordar, a si mesmo e ao coletivo. O coletivo é o povo, no fim é sempre o povo”.

A vida de Zé Det é um mar agitado em que muito aconteceu, e se ainda acedeu ao convite de Vitorino e Maria do Céu Guerra para ajudar a gerir o Ritz Club nos anos 90, em 2006 a Universidade de Évora licencia-o em História (vertente Arqueologia).

Desassossegado, se viajasse no tempo afirma sem hesitar que faria tudo como fez até hoje. “Se calhar tornava as minhas vinhas melhores do que foram até agora”. Brindamos esperando que o vinho venha bom. E aos 76 anos ainda há espaço para sonhos? Enquanto nos levantamos e pensamos em sair com souplesse, os olhos voltaram a brilhar: “Gostava de dar um golpe de estado e de ter gente suficiente para me apoiar”.

2 Responses

  1. Uma história de vida que serve de exemplo e reflexão para todos nós. Que a coragem e a força nunca faltem ao tio Zé do Vimieiro.

  2. Muito interessante.
    Para quem conheceu Palma Inácio – meu colega parlamentar entre 83/85 – esta entrevista com este homem, que apenas conhecia de nome pela própria boca de Palma Inácio, é muito interessante. Testemunho sério e verdadeiramente sincero de um homem sempre revoltado com injustiça social praticada por muitos e negligenciada cada vez mais por um setor que no silêncio nem percebe que lhes estão a cravar uma faca nas costas. Quando derem por isso, já é tarde.

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