Ana Luísa Delgado: “Marchar contra as trincheiras”

A opinião de Ana Luísa Delgado, jornalista

Odair Moniz não foi a única pessoa a ser morta pela polícia em bairros sociais, problemáticos dirão alguns, como o Zambujal, a Cova da Moura e outros. Foi mais um. Bairros onde vivem pessoas que para terem o que comer e pagar as contas no final do mês chegam a ter dois e mesmo três trabalhos.

Também bairros onde se lançam sementes para fomentar o radicalismo e o banditismo. Seguramente locais onde o policiamento de proximidade acabou, e para onde são enviados [quase que por castigo] jovens polícias com poucos anos de profissão, muitos deles acabados de sair da academia, necessariamente sem a experiência e o discernimento de outros mais velhos.

Uma das coisas que mais me impressionou em todo este episódio foi ver na televisão imagens gravadas através de telemóvel a partir de um prédio em frente ao local onde Odair Moniz foi baleado. Não pelas imagens em si, elas próprias chocantes, mais por se passarem os minutos, e muitos foram, em que o homem permaneceu no chão, rodeado por agentes da autoridade, sem nenhuma assistência, sem que alguém se aproximasse para efetuar uma manobra de reanimação, sem que alguém tentasse recuperar aquela vida. Sem qualquer humanidade, portanto.

Não, isto não é só um problema dos bairros do Zambujal ou da Cova da Moura. É, talvez antes de tudo, o reflexo de uma sociedade entrincheirada, onde cada um parece incapaz de ver e de aceitar o outro, nas suas diferentes formas de encarar a vida.

São casos que também já aconteceram no Alentejo, por uma e outra vez. Lembro-me bem de uma manifestação em que polícias protestaram virando-se de costas para o Tribunal de Évora, depois de um agente ter disparado a matar sobre um rapaz que havia assaltado uma loja de calças, o que levou uma juíza a decretar a sua prisão preventiva. Ou, mais recentemente, daquele grupo de militares da GNR, todos eles jovens, entretido a insultar e a agredir imigrantes em Odemira, com registo de imagens para mais tarde recordar.

No final do julgamento, o juiz-presidente, dirigindo-se a cada um dos arguidos, disse que “é neste momento que se destacam os homens de valor”, numa referência crítica aos crimes dados como provados. “Esta loucura das redes sociais parece que entrou, pelo menos, na GNR de Milfontes de uma forma descontrolada e despropositada”, acrescentou.

Não sei se será apenas problema das redes sociais, ainda que estas, por fomentarem os extremismos e a conflitualidade – afinal, diz-se que é isso que dá ‘likes’ e gera receitas – não se possam isentar de responsabilidades. Haverá igualmente problemas ao nível do recrutamento e formação daqueles a quem o Estado dá “licença para matar”, mas sobretudo da falta de princípios éticos. No mundo da pós-verdade tudo é relativo. E até valores como os da igualdade, da liberdade e da fraternidade, sobre os quais foi erigida a civilização oci- dental contemporânea, pouco mais parecem ser do que mera retórica.

Nunca como hoje foi tão importante o diálogo. Não porque o mundo não tivesse vivido momentos mais graves, simplesmente porque ainda estamos a tempo de os evitar.

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