Artigo de Fernando Pinto do Amaral: “Fernando J. B. Martinho e os outros”

Detentor de vasta cultura, Fernando Martinho não a alardeava, mas tal cultura revela-se ao longo da sua obra ensaística, na qual tanto aborda autores centrais (Pessoa, Sena) como se mostra atento a escolas ou a correntes eventualmente minoritárias.
Fernando Pinto do Amaral (texto)

Arecente notícia da morte de Fernando J. B. Martinho (1938/2025) causou-me profunda tristeza; e no entanto, embora a morte seja inevitável, há pessoas que ficam connosco e que parecem não morrer, como no caso do Fernando Martinho, cuja evocação é para mim ao mesmo tempo fácil e difícil: fácil porque uma boa parte do seu universo de interesses correspondia a um outro universo que era – e de certo modo ainda é – também o meu; tais afinidades electivas aproximaram-nos ao longo da vida, e ainda tentarei explorá-las neste texto; e todavia, é-me difícil evocar o Fernando Martinho precisamente porque essas afinidades podem avolumar naturais distorções de memória ou erros de paralaxe que me impedem uma visão mais analítica.

Dito isto, começo por recordar o modo como o conheci na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) por volta de 1984 – eu como aluno e ele como professor. O Fernando Martinho chegara há poucos anos de Santa Barbara, onde convivera ainda com Jorge de Sena e depois de 1978 com a sua viúva, Mécia de Sena, numa experiência californiana que transparecia nas suas aulas ou nas referências que nos dava, singularizando-o num departamento em que a maioria dos docentes provinha de áreas francófonas ou do antigo curso de Românicas.

O perfil do Fernando Martinho era diferente – e a par dos autores de outras línguas, o seu quadro de interesses abrangia a poesia portuguesa do século XX, do modernismo aos nossos dias, com ênfase na figura de Fernando Pessoa. Sendo eu jovem assistente da FLUL, isso levou a que frequentemente ele e eu coincidíssemos em sessões públicas alusivas à poesia do século XX – e seria fastidioso enumerar aqui as múltiplas vezes em que estivemos juntos em colóquios, conferências ou debates, programas de rádio ou de televisão, ao longo dos saudosos anos 90 do século XX.

Antes de prosseguir, convém lembrar que Fernando J. B. Martinho nasceu em Portalegre em 1938, licenciando-se em Filologia Germânica. Foi leitor nas Universidades de Bristol e de Santa Barbara, doutorando-se em Literatura Portuguesa na FLUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde leccionaria Teoria da Literatura e Estudos Pessoanos.

Colaborou em inúmeras publicações – destacando-se as revistas Colóquio/ Letras e Relâmpago –, prefaciou inúmeras obras e publicou ensaios como “Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa: do Orpheu a 1960” (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983); “Pessoa e os Surrealistas” (Hiena, 1988); “Mário de Sá-Car- neiro e o(s) Outro(s)” (Hiena, 1990) e “Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50” (Colibri, 1996), cuja segunda edição revista recebeu o Prémio de Ensaio do Pen Clube Português em 2013 – e ainda “Jorge de Sena – Aqui no Meio de Nós”, que recebeu em 2007 o Prémio Jorge de Sena. Foi também presidente da Associação Portuguesa de Críticos Literários e receberia em 2015 o Prémio de Consagração da Fundação Inês de Castro.

Voltando à minha amizade com o Fernando Martinho, foi a meio da já referida década de 90 que ela viria a estreitar-se ainda mais, tendo em conta que, após a morte do David Mourão-Ferreira, meu primeiro orientador de doutoramento, pedi ao Fernando que assumisse esse papel entre 96 e 98, ano em que vim a doutorar-me.

A nossa proximidade – também em júris académicos – levou a que mais tarde ele me oferecesse a sua beca, traje que passei a usar como testemunho de uma dedicação aos outros que era um traço essencial do Fernando Martinho. Havia na sua atitude perante os alunos ou os colegas uma disposição generosa e afável que o fazia interessar-se genuinamente pelos outros – e esses outros eram naturalmente os poetas, mas também quem os lia ou quem os estudava, numa comunidade de valores humanos e literários assente nas palavras com que os autores dialogavam connosco.

Detentor de vasta cultura, Fernando Martinho não a alardeava, mas tal cultura revela-se ao longo da sua obra ensaística, na qual tanto aborda autores centrais (Pessoa, Sena) como se mostra atento a escolas ou a correntes eventualmente minoritárias. Tal atenção é notória, por exemplo, na sua tese de doutoramento – “Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50” (Colibri, 1996) –, em que o autor procede a um rastreio sistemático das vozes poéticas dos anos 50 do século XX, não se detendo apenas nos poetas mais relevantes, mas arriscando resgatar alguns ou algumas que à primeira vista poderíamos considerar de segunda linha, mas que em certos textos atingem um alto nível literário.

Um dos grandes méritos do Fernando Martinho era o de descobrir tais poemas numa floresta de livros e de revistas literárias que ele conhecia melhor que ninguém, acompanhando a evolução dos movimentos literários portugueses com um grau de conhecimento que eu por vezes comparava ao do poeta Luís Amaro, autor também alentejano (*Aljustrel, 1923 + Lx., 2018). Recorrendo aos textos para fundamentar cada perspectiva, Fernando Martinho praticava uma leitura fina, uma close reading cujo olhar resultava bastante nítido, mas sempre com a preocupação de que essa nitidez a nível textual não comprometesse uma visão mais geral que ele insistia em manter quando abordava um grupo ou uma tendência literária mais ampla. Digamos que o seu era um olhar de crítico mas também de historiador, mani- festando-se com frequência através de balanços literários periodológicos ou de textos mais longos como os que elaborou p. ex. para o Instituto Camões.

Não quero terminar esta memória pessoal do Fernando Martinho sem destacar a sua poesia – faceta que durante muito tempo ele não punha em relevo, numa atitude que denotava, mais uma vez, o seu desejo de não sobressair, a sua vontade de olhar primeiro para os outros e só depois para si mesmo.

Constituída por dois livros separados por dez anos – “Resposta a Rorschach” (1970) e “Razão Sombria” (1980) –, a poesia de Fernando Martinho merece uma leitura que um dia ainda espero dedicar-lhe. Nesta evocação sublinho a densidade de uma escrita retoricamente concentrada em imagens fortes, carregadas de sentido. Um título como “Resposta a Rorschach” torna-se aliás revelador, fazendo corresponder a emergência da poesia a uma resposta ao teste de Rorschach, usado pelos psicólogos – e certos poemas deste livro parecem floculares, também eles baseados em manchas ou borrões de cores perante as quais o poeta se situa, como se cada poema fosse a interpretação dessas manchas de cor:

“Respiras num meio de gelatina/ peixe cego de ventre/ esquivo/ rasando algas// És sem sangue/ a circulação com que o visco justifica o aquário// Subtil flora da magia” (p. 30).

Estou quase a concluir, mas importa ainda lembrar a subtil presença do Alentejo ou de autores alentejanos no universo do Fernando Martinho – e deixo como exemplo, no livro que venho abordando, dois poemas em que o autor evoca directamente dois poetas alentejanos que conheceu – o malogrado Cristovam Pavia, oriundo de Castelo de Vide (1933/1968), e Raul de Carvalho, originário de Alvito (1920/1984) – em poemas impregnados de uma notável imaginação verbal: o caso de Pavia era especial para Fernando Martinho, pela sua curta vida e pelo triste suicídio aos 35 anos; quanto a Raul de Carvalho, é quanto a mim um dos mais intensos poetas líricos do século XX – e é precisamente a Raul de Carvalho que Fernando Martinho dedica o poema final de “Resposta a Rorschach”:

“O que pisamos no peito/ além da amarga polpa da/ solidão?/ E que fermento pomos nas lágrimas/ inesgotáveis?// E a dor, se a erguemos, a que luz a destinamos?// Acaso a morte é o vinho que merecemos?” (p. 38).

O autor do texto é professor de Literatura, tradutor e poeta

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