Até ao tempo dos nossos avós, havia dois tipos de gente: os poucos que escreviam e os tantos que viviam com o peso do tempo nos ombros. Para quem não tinha papel, nem tinta, a única forma de guardar a memória era cantá-la ou contá-la, sem nunca deixar que se perdesse no vento. As aldeias eram bibliotecas sem livros, onde cada idoso era um capítulo e cada conversa à sombra do chaparro uma página a ser passada. Cada história, cada cante, cada receita, passava de boca em boca, de geração em geração, porque o esquecimento era um luxo que ninguém podia pagar. Uma corrente que ligava gerações, onde cada elo era essencial e onde bastava um silêncio para que tudo se quebrasse.
No Alentejo, essa fragilidade sempre foi força. O cante alentejano não nasceu para ser escrito, nasceu para ser ecoado nas paredes brancas das adegas velhas, para se misturar com o ar das noites longas. E o vinho de talha, esse vinho que não tem pressa, há muito que é muito mais do que vinho, é testemunho líquido de como o barro guarda o tempo.
Hoje, o digital trouxe-nos uma nova forma de memória. Já não precisamos de confiar apenas na voz dos mais velhos ou na lembrança de quem ainda sabe. As aldeias tornaram-se redes sem margens, onde qualquer um pode ser guardião do que já foi. Podemos gravar histórias em vídeo, arquivar o som de modinhas, digitalizar manuscritos antigos e eternizar o jeito como a avó amassava as filhoses. O que antes estava preso a um lugar ou a um nome, agora pode pertencer a quem o quiser preservar. O cante já foi só de quem o cantava. O vinho de talha já foi só de quem o fez. Hoje, são do Mundo e de todos os que os guardem no coração, num disco ou na nuvem.
A nuvem, esse lugar misterioso onde os dados flutuam, é como uma talha de argila digital que guarda memórias, onde cada fotografia, cada vídeo, cada história guardada não fica apenas suspensa, mas em repouso. É um celeiro que é de alguém, mas que tam- bém é de todos, onde confiamos que o telhado nunca deixe entrar a chuva e que a porta, mesmo longe dos nossos olhos, esteja sempre bem trancada. Tal como o grão de trigo que se esconde na terra à espera da primavera, as memórias na nuvem podem ficar adormecidas entre zeros e uns, mas nunca morrem. Quando regressam à terra, fazem-no como a chuva que cai sobre os campos secos, trazendo de volta a vida e a promessa de continuidade.
Talvez pareça estranho querer quebrar estas algemas do tempo. Talvez haja quem sinta que o que é digital não tem o gosto do que é passado de boca em boca. Mas o tempo tem formas curiosas de respeitar a memória. Porque um dia, daqui a muitos anos, quando alguém voltar a Vila de Frades, quando uma voz nova puxar por uma moda ou quando um copo de vinho for erguido a quem já partiu, essas cápsulas do tempo que agora deixarmos na nuvem estarão lá a guardar o saber, prontas para saltar gerações e regressar a casa com o mesmo sabor.
O Zambujo ou o Piteira podem finalmente respirar de alívio, libertos do fardo de quem carrega a memória de uma terra inteira nos ombros. Já não precisam de cantar cada verso como se o eco pudesse ser o último, nem de apressar as uvas que ainda não pediram para fermentar. Agora, quem canta, canta sem pressa e quem faz vinho faz sem medo. A me- mória já não vive refém do esquecimento, flutua nas nuvens, sabendo que, um dia, há de encontrar o seu chão.
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