Paulo Portas sobre o pai: “A sua vida é a de um nómada do urbanismo”

Filho arquiteto Nuno Portas, hoje falecido, Paulo Portas evocou o pai num discurso proferido aquando do doutoramento honoris causa no Iscte - ao qual o homenageado já não pode comparecer por motivos de saúde. Reproduzimos o discurso, proferido em dezembro de 2020.

Para qualquer um de nós – filhos, netos ou irmãos – é especialmente difícil fazer este agradecimento à Universidade em geral e ao Iscte em particular. Falar em nome do nosso Pai, Avô ou Irmão, ainda para mais sem o nosso “mano velho”, o Miguel, implicaria sempre uma porção de atrevimento: o nosso Pai viveu a vida que quis viver e não me lembro de o ouvir falar pelos outros, ou por nós. É um homem inteiramente livre e ensinou-nos a viver apenas como a nossa liberdade determinasse. Numa família tão plural, essa lição de tolerância e ternura está guardada nos nossos corações. 

Podia ter sido cineasta, fotógrafo, pintor ou critico de arte, mas escolheu ser arquiteto, talvez porque gostasse de trabalhar com equipas e em equipa, em malha ou em rede, como hoje diríamos. Poderia ter ficado apenas do lado da estética, da forma e da criação, que admirava, mas a certo passo preferiu o urbanismo, o território e o planeamento urbano, que abraçou. Terá sido a escolha do mais complexo e interdisciplinar sobre o mais visível e individual. 

Dizia de si próprio: “Sou um arruador”, aquele que ajuda a traçar as ruas na certeza das incertezas: antecipou que o crescimento exponencial das cidades seria a morada principal deste mundo em mudança. Olhava para as cidades como complexidade humana e territorial, sempre inacabada, quase sempre a necessitar de compromisso e reforma, como se pensasse — acho que pensava —, que é mais útil contribuir para ordenar uma certa desordem, do que começar tudo de novo e destruir o velho, com cidades novas de raiz, dirigidas e às vezes dirigistas, elas próprias sombra do que foram, depois de começarem a ser. Escolheu, portanto, um caminho difícil. E fê-lo com inesgotável alegria, conhecimento, paciência e empenho. 

Do Centro Histórico de Guimarães ao contínuo do Vale do Ave; do Restelo aos Olivais; de Chelas à Expo ou a Aveiro; do Sagrado Coração de Jesus a Almada, a sua vida é a de um nómada do urbanismo, acumulando experiências e conhecimento. Não conheceu fronteiras, nem quando éramos um país em autarcia: sempre pensou que o nosso jardim é bonito, suficiente- mente bonito, mas bonito mesmo é conhecermos muitos outros jardins, tanto os exuberantes como os exasperantes, e imaginar, imaginar, sempre.

Como alguém escreveu, foi internacional antes da internacionalização da nossa arquitetura: em Madrid ou em Barcelona, no Rio de Janeiro ou nas Nações Unidas, foi fazendo ou pensando a cidade, ou partes delas. Academicamente também. Migrou cedo das Belas Artes de Lisboa para as no Porto, e foi a olhar para o Douro, se calhar por estar mais perto da Galiza familiar que também nos habita, que decidiu viver mais estavelmente. Adorou sempre ensinar, e também aprender. Cá dentro e lá fora, neste caso, sobretudo em Paris e em Milão. 

Quando há dias teve um acidente, achava que não podia chegar atrasado a uma conferência. Foi a sua vida: conferências, doutoramentos, seminários e júris. “Con un universalismo arrollador”, dizia o seu amigo Solà-Morales. Certamente gostou dos prémios e distinções que recebeu. Mas era e é por natureza altruísta e discreto, excepto na fruição e na partilha do saber. 

Todos devemos ao nosso Pai, Avô e Irmão muitas coisas, e como sabemos Deus está nos detalhes, e Deus inquietou-o bastante ao longo de uma vida de empenhamentos espirituais, estéticos, políticos e sociais. Permitam-me uma nota pessoal: de rajada e de memória foi ele que me deu a primeira Leica e não mais perdi a sensibilidade para a arte de fixar o passado e o presente no mesmo instante; com ele descobri o Renasci- mento, numa visita guiada de arquiteto para leigo e miúdo, e foi definitiva essa mútua admiração por Itália; com ele discuti muitos filmes, porque o cinema foi outro testemunho móvel que nos passou; na música, melómano, os clássicos fizeram-lhe muita companhia quando lia e desenhava; e muito fiel ao jazz: recordo as vezes que ele tentou que eu gostasse de jazz, e na verdade conseguiu, se não me engano a partir do concerto de Colónia de Keith Jarrett. Não me sai da cabeça que este ano, mesmo na véspera da pandemia, guardei uma manhã para ir ver o David em Florença, onde era eu menino ele teve o encanto de me levar. 

O nosso Pai, Avô e Irmão sempre encorajou, com larga panorâmica, a educação das nossas sensibilidades. Há qualquer coisa do nosso Pai nas maravilhosas lojas com que a minha irmã tenta que não se interrompa a memória, como há qualquer coisa do nosso Pai na modernidade dos projetos editoriais em que eu e o Miguel nos envolvemos. Sei a razão pela qual não fui, como queria, arquiteto: a matemática. Mas sei a melhor razão que me leva, até hoje, a adorar arquitetura: o meu Pai. 

Agradecemos, todos, ao Iscte esta distinção. Não podemos substituir o sorriso com que ele estaria aqui. Mas podemos sentir orgulho no Pai, no Avô, no Irmão, no Tio, no cunhado, no primo ou no amigo – inspirador, cosmopolita e livre. De lapiseira de minas e cachimbo na mão, de preferência com um filme de Luchino Visconti logo à noite.

Fotografia | Miguel A. Lopes/Lusa

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