Francisco Bilou: “Capital Europeia da Cultura, entre o legado e o desígnio”

O entusiasmo em valorizar o papel de Évora no século XVI como base para a sua projeção cultural contemporânea esbarrou na indiferença do projeto Évora_27, que ignorou esse legado. Símbolo maior desse afastamento foi o apagamento consciente de Túlio Espanca, figura-chave no estudo da história e património da cidade. Francisco Bilou (texto) e Cabrita Nascimento (fotografia)

Perdida a oportunidade em 2012 (sugerida por vozes locais ainda em 2006), Évora assumiu candidatar-se a Cidade Europeia da Cultura em 2027. Formalizada em outubro de 2022, a proposta convenceu o júri internacional que deliberou, favoravelmente, a 7 de dezembro desse ano. O Vagar, uma outra arte de existência, lema bem pensado e melhor resolvido enquanto elemento diferenciador da identidade local, foi então acolhido por todos com manifesto entusiasmo.

Não admira que a perceção pública se tivesse manifestado de imediato com notório otimismo. Também contribuiu para isso a generalização das seguintes ideias-chave: o desígnio comum a alcançar estava sustentado na ponte entre a herança patrimonial e o sentido de contemporaneidade (pois assim o exigia o peso da cidade histórica e a fortuna da região de tão vincado substrato cultural); a garantia do primado do estrutural sobre o efémero (posição de princípio que tranquilizou todos quantos receavam o contrário); a opção por uma auscultação pública de pessoas e instituições (facto que deu sinais auspiciosos de um projeto participado e integrador).

Nesse processo de auscultação pública, e animado por tão boas perceções, tive a oportunidade de chamar a atenção da responsável pela candidatura para um facto histórico que, a meu ver, ajudava à qualificação programática do bid book, dando-lhe substância e fundamento – o facto de Évora, há exatamente cinco séculos, entre 1532 e 1545, ter beneficiado da presença quase contínua da corte régia e do aparato administrativo do Estado, o que lhe conferiu uma dimensão única (e irrepetível) como cabeça política do reino (e do império), e, por essa via, o ter alcançado então o invejável estatuto de umas das capitais europeias de cultura.

Posta a questão nestes termos, uma tal singularidade histórica poderia ser o garante de uma saudável revisitação (que não recriação) do passado para dele tirar ingredientes fundadores e legitimadores da identidade coletiva da cidade no quadro da cultura europeia. Os sinais dessa Aurea Aetate de Évora, que, aliás, estão consubstanciados na classificação da cidade pela Unesco, estão bem visíveis a quem os queira percecionar.

A título de mero exemplo, lembro aqui apenas três: o programa artístico da fachada da Igreja da Graça (que finalmente entrará em trabalhos de conservação e restauro ainda este ano), sendo uma das mais importantes realizações nacionais “ao modo de Itália”, ademais concebida pelo melhor mestre francês a trabalhar entre nós (Nicolau Chanterene); ou ainda as diligências arqueológicas de André de Resende no decurso da refundação do Aqueduto da Água da Prata (1533-39), esta como aquelas manifestações pioneiras na Europa do tempo; ou ainda a figura incontornável de Francisco de Holanda, que depois de estadear em Roma (1538-40), onde privou com o célebre pintor e escultor Miguel Ângelo, e dele deixando memória escrita hoje fundamental à cultura do Renascimento europeu, começou em Évora (em agosto de 1545) as suas “Idades do Mundo”, um documento visual único na arte europeia, ele que foi o primeiro esteta a definir a nível mundial o conceito de Ideia na criação artística. Isto é, um conjunto de elementos da identidade local que dão a Évora uma ‘auctoritas’ não negligenciável no contexto histórico da cultura europeia.

De pouco valeu, no entanto, este nosso entusiasmo em mostrar a dimensão histórica de Évora para a cultura europeia no início do segundo terço do século XVI, bem como em defender a ideia de que esse capital histórico (arqueológico, filológico e existencial) poderia ser ponto de partida à tão desejada “contemporaneidade” cultural. A sublinhar esse manifesto desinteresse, o bid book de candidatura ignorou o nome de Túlio Espanca (nem uma só vez é referido). Como soube depois, uma tão descuidada desmemoria sobre quem, durante meio século, nos deu o mais fundamental conhecimento sobre a rica e longa história da cidade e da região, não teve nada de casual. Foi, como se percebe, uma opção programática consciente, a mesma que deixou de fora os acervos artísticos e documentais do Museu, da Biblioteca ou da Universidade.

O que contrasta com a importância dada, surpreendentemente, ao recinto amuralhado da cidade, defendido, aliás, com grande incorreção histórica (não leram certamente Túlio Espanca). Trata-se, claro está, de uma opção legítima, mas a que lhe falta a compreensão histórica da dinâmica urbana, militar e até profilática dos “muros”, tornados meros agentes simbólicos da paisagem e, nessa medida, confinados à estrita dimensão cenográfica… Parece estar na moda, e alguns museus nacionais especializaram-se nela, em se usar os bens patrimoniais como adornos cenográficos em tudo o que é expressão artística contemporânea.

Estamos, contudo, na fase onde este legado deve ser assumido, sem mais discussão, como verdadeiro desígnio coletivo. Até porque este parece ser consensual à maioria dos eborenses, concretamente na forma de um projeto mobilizador e renovador de estruturas e mentalidades, capaz de potenciar o melhor e o mais criativo da presente geração em prol da cidade e da região. Se este também é o meu desejo, e com ele me contentarei, não deixo de notar que esse desígnio melhor ficaria se fosse ao en- contro de algo mais concreto do ponto de vista programático.

Com efeito, e já sem qualquer expetativa de que a memória da Aurea Aetate da cidade possa ter ressonância palpável na programação cultural da Évora_27 (que conheceremos no final de 2026), ainda assim estou em crer que daqui a ano e meio teremos o Rossio estruturado e aprazível, com uma Feira (a desse ano) já dinamizada segundo um modelo sustentável de gestão e programação, acaso público-privado, talvez uma envolvente norte à muralha medieval totalmente requalificada (mesmo sem o Pavilhão Multiusos), e um eixo estratégico (pedonal desejavelmente) ao longo do Aqueduto, até ao novo polo cultural de São Bento de Cástris, subindo ao Alto de S. Bento, a mais importante “varanda de vistas” da cidade e que urge requa- lificar nessa e noutras dimensões.

Seja como for, faço votos para que a Associação Évora_27, escudada na qualidade e profissionalismo da sua direção e respetiva equipa de missão, seja capaz de tornar este projeto único numa oportunidade de sucesso para os eborenses e, consequentemente, num momento inesquecível para os milhares de visitantes esperados ao longo de 2027.

Mas não se julgue que este desígnio é apenas da responsabilidade material da Associação. O sucesso da Évora_27 também tem de contar com o empenho de todos nós, seja nos gestos particulares, seja nos compromissos coletivos. Por isso, o melhor é estarmos conscientes desse papel e preparados para quando os olhos do mundo se virarem para nós à procura da nossa singularidade e, já agora, do nosso bom exemplo.

O autor do texto é historiador de arte

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Partilhar artigo:

ASSINE AQUI A SUA REVISTA

Opinião

Caro? O azeite?

BRUNO HORTA SOARES
É p'ra hoje ou p'ra amanhã

PUBLICIDADE

© 2025 Alentejo Ilustrado. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por WebTech.

Assinar revista

Apoie o jornalismo independente. Assine a Alentejo Ilustrado durante um ano, por 30,00 euros (IVA e portes incluídos)

Pesquisar artigo

Procurar