Ana Luísa Delgado: “Prender para investigar”

A opinião de Ana Luísa Delgado, jornalista e advogada

No tempo da “outra senhora”, ou como se dizia, do “Botas”, a alcunha dada pelo povo ao ditador Oliveira Salazar, eram muitas as pessoas que, apenas por pensarem diferente, escreverem contra o regime, ou simplesmente por estarem no sítio errado à hora errada, eram detidas e ficavam encarceradas meses a fio, sem indicação ou acusação. Aquilo a que se chama prender para investigar.

Quando se deu o 25 de Abril tudo mudou. Os presos políticos foram soltos e passou a existir um verdadeiro estado de direito, em que todos são iguais perante a lei. No âmbito deste estado de direito, sobretudo nos anos imediatos à Revolução, as pessoas passaram a ser detidas apenas se existissem fortes indícios da prática de crimes graves, sendo presentes a um juiz nas 48 horas seguintes. Juiz esse, a que hoje chamamos o “juiz das liberdades”, que aplicaria ou não medidas de coação privativas da liberdade.

Sim, eram raros os casos em que essas 48 horas eram ultrapassadas. E eram também raras as vezes em que esse mesmo juiz das liberdades não aplicava uma medida de coação, tal a consistência dos indícios recolhidos na fase de investigação.

Os anos foram passando e em 2024, quando se celebram os 50 anos do 25 de Abril, temos vindo a assistir ao retomar de um filme que já suponhamos acabado. O Ministério Público (MP), com a ajuda da magistratura judicial, passou, como o comprovam muitos casos vindos a públicos, a prender para investigar.

Os detidos são presentes ao juiz das liberdades em 48 horas, para serem identificados, mas depois esperam dias e dias pelas medida de coação. Mais, chegam a esperar de um a dois anos, em prisão preventiva, por uma acusação. Em muitos dos casos, os detidos passam várias noites nos calabouços das nossas esquadras, postos da GNR ou em estabelecimentos prisionais, à espera de serem ouvidos e saberem as medidas de coação. Sendo que já sucedeu terem sido libertados “apenas” com termo de identidade e residência.

Quando questionada sobre estas situações, em particular sobre a operação “Influencer” que levou à queda de um Governo de maioria absoluta e em relação à qual nem o Tribunal da Relação encontrou suspeitas da prática de qualquer crime, a Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, lá se procurou justificar: “Por vezes não haver aquele nível de especialização que permite ter a mesma acuidade na avaliação dos dados disponíveis pode conduzir a um resultado desses…”. É precisa alguma lata.

E, depois, há situações ainda mais graves, em que as pessoas são detidas, levadas ao juiz de instrução nas primeiras 48 horas, devido à falta de condições nos tribunais portugueses ficam algemadas, juntamente com os outros arguidos, tipo “sardinha em lata”, e quando o advogado quer falar com o seu constituinte tem de pedir a um polícia para o trazer. Acreditem que sei do que falo. Enquanto advogada, já me vi perante a circunstância de ter de conversar com um constituinte algemado e com um polícia nas proximidades, de ouvido à escola.

Sempre fui contra uma reforma do Ministério Público, bem como do funcionamento dos tribunais e continuo a ser. Mas algo tem de mudar. Não nos podemos esquecer o princípio do estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes.

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