Ana Paula Fitas (ensaio): “Cultura e Identidade Regional”

Não é difícil concluir que o que falta desenvolver e tomar como força motriz do empenho coletivo no desenvolvimento sustentado e sustentável da região Alentejo é o reforço do sentimento de identidade regional. Ana Paula Fitas* (texto) e Cabrita Nascimento (fotografia)

Em 1974, Melville Herskovitz afirmava: “Cultura é toda a produção humana” e a sua conceptualização de Cultura conduziu-nos ao reconhecimento científico de que o conceito de “real” proposto por Sartre (onde o sujeito é responsável pelo ato de conhecer), não ignora, reduz, minimiza ou ignora, o impacto individual dos processos de socialização e enculturação na configuração da sua própria personalidade, em termos de interações culturais, sociais e interpessoais. Daí que o processo de “construção identitária” decorra da(s) singularidade(s) dos percursos, trajetos e itinerários individuais, bem como, do respetivo cruzamento de vivências, reflexões, hábitos e valores, adquiridos ao longo dos mais precoces processos de socialização e enculturação.

De facto, identidade é o conceito a que apelamos para definirmos a especificidade cultural do comportamento, ao qual não podemos retirar, nem sequer sobre o qual podemos afirmar certezas relativas ao grau de ponderação de qualquer uma das suas múltiplas dimensões, sem conhecer a(s) história(s) de vida de cada individualidade. Identidade é o que reconhecemos, associado a um território ou grupo de pessoas, como próprio da sua “visão do mundo”, das suas práticas e dos seus saberes, mas cujos sinais, símbolos, códigos e comportamentos são reconhecidos pelos “outros” (exteriores ao grupo ou ao território) como “singulares” – tendo este reconhecimento um fundamento ontológico nas características específicas do indivíduo ou do grupo, isto é, no reconhecimento da manifestação comportamental que se manifesta como “singularidade”.

De certo modo, podemos dizer que a identidade é o mapa, a bússola ou pelo menos, a escala que, por todo o mundo, os humanos utilizam para se identificarem enquanto membros de um grupo ou de uma comunidade, apelando à sua vivência societária como condição de legitimação da existência humana, representada pelo indivíduo e associada a um lugar de origem e/ou de pertença que integra e institucionaliza o comportamento singular num contexto societário.

Inquéritos e entrevistas realizadas em diversos espaços descontínuos , confirmam que a autorrepresentação individual integra “níveis de pertença”, ou seja, níveis de proximidade, relativamente ao(s) grupo(s) ou comunidade(s) que afirmam como “fonte formativa”, isto é, local de origem e/ou residência.

Em primeira instância, as pessoas reivindicam a sua identidade familiar (invocando, a título comprovativo, o apelido consanguíneo e o apelido adquirido por aliança), seguindo-se-lhe o reconhecimento da identidade do grupo/comunidade de origem e/ou de residência (aldeia, local, sítio ou bairro – se em meio urbano); em seguida, podendo ou não ser omitido e afirmado o respetivo grupo profissional , as pessoas inquiridas referem a região de origem e/ou de residência (distrito, província e região administrativa ou linguística) e só em último lugar (em termos de reconhecimento do sentimento de pertença) é referida a nacionalidade, ou seja, o país em que se integram (na sua ação política – nem sempre coincidente com a autorrepresentação cultural).

Do tratamento de dados resulta a confirmação empírica intuída reiteradamente de que o tempo e o conhecimento interpessoal constituem as dimensões estruturantes dos processos de socialização e enculturação, sobre os quais vamos construindo o nosso conhecimento, a nossa personalidade e o nosso comportamento, adaptando-nos ao meio cultural em que estamos ou passamos a estar inseridos. Desta constatação, resulta, sem contradição lógica, o facto de “ser” consistir em “pertencer”!

Ora se, como disse Sartre: “Conhecer é Realizar”, então, “ser é realizar”, porque cada realização arrasta, subjacentemente, a aprendizagem reproduzida do meio de “pertença” e/ ou a inovação, por continuidade ou rutura com a tradição, recorrente da interação individual com os respetivos meios de socialização e enculturação.

Neste sentido, a “singularidade” é a marca, o símbolo, a representação perfeita do conceito de “identidade”, indistinto, na diversidade de cada sua manifestação, dos traços e sentimentos de pertença (ou de não-pertença e consequentemente, de estranheza) que nos permite compreender, de facto, cada ser humano, cada artista, cada criativo, cada escritor e cada obra. O autor, seja qual for a sua forma de expressão, expõe-se na obra que publica e divulga, podendo até nem ter consciência da dimensão e do impacto emocional resultante dessa exposição, apesar de ser esse grau de exposição o que lhe permite a universalidade requerida por toda a produção estética e o que lhe garante a não perenidade da sua obra.

As obras que vivem da proximidade transportam-nos facilmente para o descrito, como se o revisitássemos cinematograficamente. Uma obra de arte é uma narrativa que navega ao sabor da ondulação dos sentimentos e observações dos seus personagens, da vivência em construção da sua identidade, em maior ou menor sintonia, com a sua geração!

Uma geração que, adulta na atualidade, viveu de forma diversa, conforme a geografia e as características regionais do seu habitat de origem, na infância, o Estado Novo, a aceitação da miséria, da pobreza e das desigualdades sociais, mas que depois, quer ainda nos locais de origem ou já após as primeiras deslocações para o exterior do meio familiar (escola, cafés, jornais e conversas de adultos), descobriu revoluções entre as juventudes europeias, americanas e africanas contra a Guerra e contra o Colonialismo!

Uma geração que, no seu país, acompanhou e viveu o 25 de Abril, vibrou e observou o esplendor do sonho representado pela Reforma Agrária, ao mesmo tempo que assistia à raiva, à incompreensão e à revolta de quem perdia privilégios, num misto de confusões e mais ou menos justezas e (in) justiças.

Uma geração que assistiu à adesão e construção da União Europeia, à queda da URSS e do Muro de Berlim, ao aparecimento e à massificação globalizada da economia, da informação e dos sistemas educativos – suspeitando-se hoje do real impacto da emergência de um vazio funcional e utilitário que, em detrimento do interesse público, resulta de alterações políticas, num sistema democrático, exercido maioritariamente segundo a regra da alternância, num quadro pluripartidário… e da empatia entre estes valores geracionais, resulta a emergência deste sentimento de “pertença”, manifesto no reconhecimento indispensável ao desenvolvimento de uma identidade regional multicultural e multipolar, adequada à realidade de um mundo em constante mutação.

Reflexos de uma cultura e de uma consciência cívica e política multidimensional e multipolar, que necessariamente se reflete na dinâmica das redes interativas entre entidades coletivas e autores individuais, a Cultura, integradora da arte, tece as condições para o verosímil equilíbrio entre a narrativa e a interpretação da dimensão simbólica, de acordo com o quadro de desenvolvimento cognitivo, afetivo e relacional dos leitores, particularmente dos mais jovens, protagonistas da massiva adesão à digitalização, à virtualidade e quiçá, à inteligência artificial.

Reconhecendo-se inequivocamente que devemos assumir que há vozes com sentimentos de pertença que é preciso ouvir e que todas elas contribuem para o enriquecimento da nossa cultura pessoal, de grupo, regional e até nacional, emergem como condição sine qua non de uma coesão social refletida no espaço, os eixos paralelos transversais do Turismo e da Cultura que ocupam no Alentejo, o espaço- -charneira dos indicadores de um potencial desenvolvimento regional sustentável, excessivamente adiado e repetidamente enleado, cujo ritmo de progressão não é compatível com a eficácia de fixação e atração populacional, de que não podemos prescindir – por muito racismo e por muita xenofobia que daí possa advir, recorrente do aumento de tensões sociais locais e espaciais que pode (ou não) vir a concretizar-se no aumento da violência local.

No plano sociológico, o Alentejo não apresenta condições para, de imediato, atrair investimento externo ou sequer público nos setores tradicionalmente considerados produtivos, a saber, agricultura, comercialização, indústria, indústria extrativa – tendo aliás sido essa a “aposta” política que, sob o véu de Alqueva e sem significativos ganhos para a região, tem escondido o imobilismo e a falta de coragem política para planear a inovação no território.

A transversalidade estrutural do problema adquiriu tal dimensão que, há décadas, foi decidido eleger o desenvolvimento sustentável através do setor da indústria do turismo (restauração e hotelaria), sem atender a que quem visita, quer e procura bons motivos que justifiquem deslocações e estadias! Na realidade, o que o turismo procura, além de praias marítimas e fluviais, são itinerários menos vulgares, lugares e sítios que causem estranheza, aprendizagens e curiosidade, em áreas afetas ao que hoje conhecemos como “turismo ambiental”, “turismo rural” e “turismo cultural”.

Porém, apesar do contínuo aumento do “número de camas” (obsoleto indicador para efeitos de avaliação do impacto turístico local), as dinâmicas locais não deixam transparecer qualquer capacidade autossustentada em termos socioeconómicos – questão que nos leva a concluir que, no Alentejo o que parece em falta não é tanto o número de unidades hoteleiras (em particular alojamentos locais e unidades de turismo rural) ou mesmo de restauração, mas a capacidade de promover uma região autoconhecedora de si própria, capaz de distinguir e

integrar o tradicional e o contemporâneo e cuja narrativa, multidimensional, articule áreas vitivinícolas, adegas, visitas guiadas ao património arqueológico, visitas participadas ao património etnográfico e programação cultural diferenciada (teatro, cinema, debates, documentários ou conferências sobre o património regional), capazes de despertar e oferecer interesse e motivação à mobilidade dos visitantes e à sua fixação temporária.

Não é difícil concluir que o que falta desenvolver e tomar como força motriz do empenho coletivo no desenvolvimento sustentado e sustentável da região Alentejo é o reforço do sentimento de identidade regional. A identidade regional manifesta-se, de forma exuberante, nas produções culturais de uma sociedade, qualquer que seja o seu tempo e independentemente da recente pós-moderna terminologia dicotómica (será que ainda ninguém leu O Erro de Descartes de António Damásio?!), que classifica as produções culturais em “materiais” e “imateriais” (referindo-se esta última, a tradições, festividades, religiosidades, a algumas técnicas tradicionais de produção artesanal ou ao cante, em termos de produção artística e literária regional).

Esta consciência e esta valorização são particularmente importantes para a consolidação do Inconsciente e do Imaginário Coletivos que garantem a continuidade cultural, independentemente da mudança social e ainda que por ela influenciada, reforçando a consciência da identidade local e regional nas manifestações individuais ou de grupo dos agentes e produtores de cultura – cujas obras ou formas de expressão são sempre, de uma ou de outra forma, expressões identitárias que, no âmbito de uma construção efetivamente progressiva dos mecanismos que garantirão a autonomia regional, serão o historial indispensável à gestão eficaz do território e ao desenvolvimento de um adequado e integra- do Plano Cultural de Desenvolvimento Sustentável Regional.

A iniciativa ”Évora – Capital da Cultura 2027” é, como o disse a ex-diretora regional de Cultura do Alentejo, Ana Paula Amaendoeira:“um desafio, que não é fácil”. Perspetivá-la enquanto “alavanca” de uma nova estrutura organizacional da área cultural integrada na CCDR, suscetível de promover um efetivo trabalho em rede entre todos os agentes socioculturais concelhios, inaugurando a execução de uma planificação integrada da visibilidade turístico-cultural, de dimensão regional, seria, seguramente, um bom ponto de partida para chegarmos mais longe, investindo na ideia de aproximar o mundo do Alentejo!… porque é a identidade regional que confere substancialidade e singularidade à Cultura, reforçar e valorizar a sua diversidade e singularidade locais e regionais, é indiscutivelmente essencial para encarar e trabalhar a Cultura como pilar do desenvolvimento regional sustentável do Alentejo.

* Antropóloga, investigadora e escritora

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